
FOTO:RICARDO MORAES/REUTERS - 14.SET.2020
Há uma desigualdade abissal entre crianças que frequentam as creches e pré-escolas e aquelas que o Brasil decidiu excluir dessa garantia mínima do direito humano à educação
A poetisa e educadora chilena Gabriela Mistral, laureada com o Prêmio Nobel de Literatura em 1945, nos ensinou que “O futuro das crianças é sempre hoje. Amanhã, será tarde”. Não enxergo outro modo de explicitar a radicalidade do tema do direito humano à educação na primeira infância nas eleições deste ano.
Concluído o decênio do Plano Nacional de Educação 2014-2024, os dados do 5º Relatório de Monitoramento e Avaliação do PNE, produzido pelo Inep, são um alerta: o Brasil falhou com seus bebês e crianças bem pequenas. Não fomos capazes de universalizar a pré-escola (4 e 5 anos) e de atender o mínimo de 50% das crianças de 0 a 3 anos em creches. Em 2013, 87,9% das crianças de 4 e 5 anos estavam matriculadas na pré-escola. Em 2022, último dado sistematizado no 5º Relatório do Inep, alcançamos 93% (avanço de 5,8% em uma década, com míseros 0,566% ao ano). No caso das crianças de 0 a 3 anos, tínhamos 27,9% delas atendidas em creches em 2013 e chegamos em 37,3% no ano de 2022, um avanço um pouco mais significativo, ainda que incipiente (aumento de 33,69% na década, com cerca de 2,95% de incremento ao ano). Se mantivermos este ritmo, precisaremos de 13 anos para universalizar a pré-escola e mais dez anos para atingir a meta de 50% do PNE 2014-2024 na creche. Ou seja, o atual PNE seria cumprido com 10 anos de atraso. É inadmissível.
Quando estratificamos os dados, a realidade é ainda mais grave porque reproduz e amplia desigualdades estruturais da sociedade brasileira: apenas 20% das crianças de 0 a 3 que vivem na região norte do país têm acesso à creche, contra 44,3% daquelas, da mesma faixa etária, que vivem na região sudeste. No quintil de famílias mais pobres do país, apenas 28,2% das crianças de 0 a 3 anos frequentam creche, enquanto no quintil de famílias mais ricas esse percentual é de 53,6%.
É urgente que a agenda política de candidatas e candidatos ao executivo e ao legislativo nos municípios tenha, como compromisso prioritário, a expansão das vagas e a melhoria da qualidade da educação infantil
Na pré-escola, o cenário é semelhante. A taxa de atendimento de crianças de 4 a 5 anos, entre os 20% mais pobres, é de apenas 89,4%, frente a 97,1% dentre os 20% mais ricos. As desigualdades socioespaciais também são marcantes: a taxa de atendimento é de 68,8% no Amapá, 77,4% no Acre e 87,7% em Goiás. Na outra ponta, 96,9% das crianças cearenses, 96,7% das crianças maranhenses e 95,9% das crianças mineiras estão na pré-escola. A desigualdade racial também existe: 35,3% das crianças negras estão na creche contra 39,6% das crianças brancas. Na pré-escola, 91,6% das crianças negras estão matriculadas e 93,2% das crianças brancas.
Há uma desigualdade abissal entre crianças que frequentam as creches e pré-escolas e aquelas que o Brasil decidiu excluir dessa garantia mínima do direito humano à educação. Entretanto, além disso, é preciso lembrar que a qualidade dos serviços de creche e pré-escola no Brasil é desigual. Com base nos dados coletados no Censo Escolar, e no Sistema de Avaliação da Educação Básica, bem como em evidências de inúmeras pesquisas de natureza qualitativa, é bastante razoável afirmar que que uma parte das crianças brasileiras frequentam creches e pré-escolas com qualidade precária, considerando aspectos relacionados à formação dos profissionais, à quantidade de docentes/adultos por criança, à infraestrutura física e pedagógica das instituições e ao tipo de intencionalidade educativa envolvida na rotina diária dos equipamentos.
Quando não garantimos que os bebês e crianças tenham acesso à educação infantil, ou quando esse atendimento tem uma qualidade precária, estamos violando um direito fundamental conferido a eles na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Sendo bastante objetivos, estamos frente a uma violência de Estado contra os mais frágeis de nós; aqueles que pouco ou nada podem fazer para se defender ou se proteger dos profundos impactos negativos desta violação de direito. É fundamental que, nas urnas, a sociedade brasileira seja corajosa e eticamente responsável perante suas infâncias e sinalize que não compactua com este estado de coisas. Mais do que isso: é importante escolher, em cada município, lideranças políticas que se responsabilizem por políticas públicas à altura do que sonhamos e planejamos para nossos bebês e crianças e que tenham a capacidade técnica e política de articular e mobilizar os recursos do regime de colaboração com os Estados e com a União para implementá-las.
Entretanto, além de configurar-se como uma violação de direitos na vida presente de cada bebê e de cada criança, a negação do acesso à educação infantil produz efeitos negativos ao longo de toda sua vida. Pesquisas realizadas em diferentes países do mundo revelam que não frequentar a educação infantil aumenta o risco de não concluir a escolaridade obrigatória, de não alcançar empregos estáveis e seguros, de não alcançar padrões mínimos de renda associada ao trabalho, de desenvolver problemas de saúde crônicos e de se envolver em atividades ilegais. Também há forte associação entre não frequentar a educação infantil e a reprodução de ciclos de miséria e pobreza intergeracional.
Os padrões de desenvolvimento social e qualidade de vida das comunidades também são impactados pela negação do direito à educação infantil. Para citarmos dois exemplos: a igualdade de gênero e as possibilidades de emancipação profissional e socioeconômica das mulheres ficam comprometidas, e os padrões de proteção comunitária e social e de segurança se revelam mais frágeis. Finalmente, a robustez e a competitividade da economia perdem muito quando negamos às crianças pequenas o direito à educação infantil, primeira etapa da educação básica: os estudos de economia do desenvolvimento são taxativos ao postularem uma correlação entre a cobertura da educação infantil e a produtividade de trabalhadores e trabalhadoras na vida adulta.
Por todas essas razões, é urgente que a agenda política de candidatas e candidatos ao executivo e ao legislativo nos municípios tenha, como compromisso prioritário, a expansão das vagas e a melhoria da qualidade da educação infantil. Há importantes janelas de oportunidade, no âmbito do pacto federativo, para fortalecermos esse compromisso: o novo Plano Nacional de Educação, o Decreto que institui as Diretrizes para a elaboração e a implementação da Política Nacional Integrada da Primeira Infância, e o dispositivo que destina 50% da complementação da União relativa ao VAAT (Valor Aluno Ano Total) do Fundeb exclusivamente na Educação Infantil. Além disso, o Conselho Nacional de Educação deve aprovar, pela primeira vez, uma resolução mandatória contendo os padrões mínimos de qualidade e equidade na Educação Infantil, que deverão ser alcançados em cada instituição que atenda crianças de 0 a 5 anos e em todas as redes de ensino do país, públicas ou privadas.
Em 1958, o poeta argentino Armando Tejada Gomez publicou o poema Hay un niño en la calle (Há uma criança na rua). Anos depois, parte do texto foi eterninzado, numa canção, na voz de Mercedes Sosa. De diferentes formas, o poema nos lembra que as grandes realizações, as múltiplas formas de poder e riqueza, e as formas mais sofisticadas da arte e da cultura são um tanto absurdas e um tanto inúteis se há uma criança vivendo na rua. Eu diria: qualquer programa de governo que faça promessas ousadas, de diferentes tipos em torno do desenvolvimento dos municípios brasileiros será, de certo modo, absurdo ou inútil se não estiver radicalmente obcecado pela universalização do atendimento na educação infantil e pela melhoria drástica de sua qualidade.
Alexsandro Santos é doutor em educação pela Universidade de São Paulo, com estágio pós-doutoral em Administração Pública e Governo junto ao NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia) da EAESP/FGV. Atualmente, é diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica no Ministério da Educação e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Mestrado Profissional em Formação de Gestores Educacionais da Universidade Cidade de São Paulo.
Os artigos publicados na seção Ponto de vista do Nexo Políticas Públicas não representam as ideias ou opiniões do Nexo e são de responsabilidade exclusiva de seus autores. A seção Ponto de vista do Nexo Políticas Públicas é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional. Para participar, entre em contato por meio de pontodevista@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.
Navegue por Temas