Amanda Perobelli/Reuters - 13.mar.2020
Amanda Perobelli/Reuters - 13.mar.2020

O velho ensino médio e seus dilemas

Daniel Santos
Com o desenvolvimento socioeconômico, consolidação de ideais democráticos e a expansão do repertório cultural de novas camadas da sociedade, em parte fruto do próprio processo de escolarização, a demanda por uma educação emancipatória e reflexiva pressionou a expansão curricular e ampliação da carga letiva

No Brasil, cerca de metade da população adulta possui ensino médio completo, e cerca de três quartos dos jovens na faixa etária de 15 a 17 anos estão matriculados nessa etapa de ensino. No que diz respeito ao desempenho, o IDEB brasileiro de 2021 sequer atingiu nossa meta para 2015. Todos estes números estão relativamente estáveis nos últimos 10 anos, a despeito do crescente gasto por aluno e mobilização social voltados a essa etapa de ensino. O cenário reflete uma mistura de desencantamento por parte dos jovens com severa dificuldade de estabelecer prioridades por parte de nossos gestores públicos. Diversas tentativas de mudança têm sido propostas com aparente falta de consenso na sociedade civil.

Evidentemente tamanha estagnação é fruto de muitos desacertos, mas há um que me parece preceder e permear os demais: o currículo. Até meados do século passado, a principal função social da escola estava associada a ensinar conhecimentos básicos, especialmente úteis para postos de trabalho especialmente na manufatura e para o convívio em uma sociedade que agora transbordava os limites da aldeia.

Com o desenvolvimento socioeconômico, consolidação de ideais democráticos e a expansão do repertório cultural de novas camadas da sociedade, em parte fruto do próprio processo de escolarização, a demanda por uma educação emancipatória e reflexiva pressionou a expansão curricular e ampliação da carga letiva. A partir da aceleração nas transformações tecnológicas e de comunicação, nova onda de expansão curricular se fez presente.

Gosto mais da ideia de compartilhar com os jovens a decisão de manter aquilo que para eles é mais importante. Além de ser uma forma mais legítima de decidir sobre o que deve ser ensinado, a co-responsabilização pode aumentar o engajamento com a escolha feita

Em todos estes casos, uma regra esteve sempre presente: a cada vez que a história avançava e o mundo se fazia mais complexo, os governantes-adultos de plantão se reuniam para incluir novas disciplinas no currículo, sempre sob a premissa de que sabem melhor do que o jovem sobre aquilo que é melhor para ele, e invariavelmente excluindo-o deste combinado. Atualmente os currículos brasileiros de ensino médio têm entre 12 e 13 disciplinas, na maior parte das vezes sendo ensinadas de forma concomitante. Se incluirmos nessa equação que na maioria das vezes as estratégias pedagógicas tampouco priorizam o protagonismo juvenil, e que a forma de avaliação tipicamente induz a aprendizagem pela motivação extrínseca (o medo da punição), temos um cenário de uma educação ansiogênica e sem qualquer significado para o aprendente, que de forma passiva frequenta a escola ao limite de suas forças e apenas porque é obrigado a fazê-lo.

É esse o velho ensino médio, e propostas para reformá-lo não faltam. Difícil é formar um consenso para implementá-las em um ambiente democrático polarizado e sem espaços de diálogo. Uma vez que se inclui uma disciplina em um currículo, é quase impossível retirá-la. Além dos interesses iniciais que propiciaram tal inclusão, todos aqueles que agora têm um emprego graças a ela passam a defendê-la com unhas e dentes. O discurso de que cada disciplina é imprescindível para o preparo para a vida adulta tem o apoio fervoroso e coeso de alguns, e dificilmente sofrem o contraponto do público numeroso e desorganizado que em tese é o maior interessado no assunto: os estudantes. Não interessa se aprender 13 disciplinas para um jovem simplesmente não cabe em suas 24 horas disponíveis. Mais vale é dizer que está lá no currículo e que os jovens estão tendo a oportunidade de aprendê-las.

Dentre as soluções propostas, o ensino médio em tempo integral me parece solução apenas paliativa. Sem dúvida, em uma situação onde o tempo disponível para cobrir o currículo é absolutamente insuficiente, aumentar a carga horária leva a ganhos expressivos de aprendizagem. Isto está bem documentado em diversos estudos de avaliação do impacto dos Programas Ensino Integral (PEI) pelo Brasil afora, alguns dos quais feitos aqui em nosso laboratório, o Lepes. A limitação da estratégia é não considerar explicitamente a fonte do problema: o impulso do regulador em expandir o currículo a cada vez que considera que agora os jovens precisam impreterivelmente aprender mais alguma coisa. Inclusive é plausível que, com maior carga horária, haja pressão para a inclusão de novos componentes, fazendo com que em breve a insuficiência de tempo esteja novamente colocada.

Gosto mais da ideia de compartilhar com os jovens a decisão de manter aquilo que para eles é mais importante. Além de ser uma forma mais legítima de decidir sobre o que deve ser ensinado, a co-responsabilização pode aumentar o engajamento com a escolha feita. Difícil é permitir a todos oportunidades de escolha semelhantes e garantir que estas serão ofertadas com níveis razoáveis de qualidade.

Mas creio que o principal avanço ainda é o menos discutido: as aprendizagens transversais orientadas por fenômenos e problemas, que alguns chamam de pedagogia ativa. O desafio de propor um currículo enxuto, significativo e com maior protagonismo juvenil talvez esteja mais relacionado à priorização de fenômenos e problemas contemporâneos que de fato precisam de conhecimentos e competências novas para serem endereçados, do que propriamente à priorização de disciplinas e itinerários. Possivelmente toda disciplina tenha componentes que de fato precisam ser apropriados por todos, mas desde que colocados em um contexto significativo. E possivelmente a divisão curricular em disciplinas engesse e induza professores e gestores a aprofundar mais do que o necessário em cada uma delas.

Daniel Santos é professor associado de Economia na Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto. Doutor pela Universidade de Chicago. Foi vice-presidente da Sociedade Brasileira de Econometria e é atualmente coordenador do LEPES (Laboratório de Estudos e Pesquisa em Economia Social), além de membro ativo do NCPI (Núcleo Ciência pela Infância), CpE (Rede Ciência pela Educação), e Edulab 21. Em sua agenda de investigação, se dedica especialmente a compreender questões relacionadas ao desenvolvimento infantil e ao desenvolvimento integral no contexto escolar.

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