Em junho de 2023, a matéria “Analfabetismo entre negros chega a 7,4%, mais do que o dobro entre brancos”, publicada pelo Estado de São Paulo, atualizava nosso entendimento sobre uma das manifestações mais marcantes das desigualdades raciais na educação, a partir da mais recente PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios). A pesquisa é coletada anualmente pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A PNAD coleta uma série de informações sobre escolaridade e condições no mercado de trabalho a partir de um esforço minucioso de amostragem e visitas domiciliares realizadas por pesquisadores de campo treinados para aplicar questionários padronizados. A amostra é representativa dos domicílios em cada Unidade da Federação do país.
Se a PNAD coleta informações importantes para entender a trajetória dessas desigualdades educacionais ao longo do tempo, nem todos os dados relevantes podem ser coletados através dela. Informações como infraestrutura e qualidade das escolas, características de alunos, professores e gestores, ou suas crenças e aspirações, não eram até este ano coletadas por nenhuma pesquisa amostral, aplicada por pesquisadores de campo treinados, no mesmo formato das pesquisas aplicadas pelo IBGE.
Mas isto mudou em 2023. Desde junho deste ano, o Equidade.info – a primeira pesquisa amostral representativa do Ensino Básico brasileiro, iniciativa liderada pelo Lemann Center da Stanford Graduate School of Education – vem coletando dados em escolas de Ensino Fundamental e Ensino Médio de todo o país.
A pesquisa amostral representativa pode complementar muito bem pesquisas censitárias como o Censo Escolar e o questionário do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica). De um lado, amostras têm evidentes limitações: não permitem ter o retrato de cada escola ou mesmo de cada município. De outro, permitem acompanhar e aperfeiçoar informações críticas para pautar políticas de equidade para os diferentes Estados (e inclusive para sub-regiões de cada Estado, no desenho amostral do Equidade.info).
Desde junho deste ano, o Equidade.info – a primeira pesquisa amostral representativa do Ensino Básico brasileiro, iniciativa liderada pelo Lemann Center da Stanford Graduate School of Education – vem coletando dados em escolas de Ensino Fundamental e Ensino Médio de todo o país
Para ilustrar o seu potencial, a terceira onda da pesquisa (set/2023) documentou a velocidade do Wi-Fi das escolas através de aplicativo recomendado pelo NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR). Os resultados revelam um contraste significativo entre as informações autodeclaradas pelas escolas na TIC Educação – através de entrevistas presenciais ou por telefone – e aquelas coletadas com tecnologia especializada, diretamente por pesquisadores de campo treinados do Equidade.info. Segundo dados da TIC, apenas 6% das escolas brasileiras não estavam conectadas à internet entre out/2022 e maio/2023. Segundo o Equidade.info, eram, na verdade, 17% – quase o triplo dessa cifra. Ainda segundo a TIC Educação, 29% das escolas tinham velocidade de download abaixo de 10 Mbps. Já segundo o Equidade.info, eram 58% – o dobro dessa taxa.
Os insights da nova pesquisa sobre potenciais discrepâncias entre dados autodeclarados pelas escolas e aqueles coletados diretamente através de metodologia especializado não se restringem à conectividade. Voltando ao tema das desigualdades raciais, a primeira onda da pesquisa (jun-jul/2023) revelou inconsistências entre hetero e autoclassificação racial para cerca de 30% dos estudantes entrevistados. Concretamente, o time da Stanford GSE documentou que, na maioria desses casos, os profissionais de educação atribuíam a cor preta aos estudantes que se autodeclaram como pardos. Essa incongruência de classificação tem um padrão específico: é tanto maior quanto piores os indicadores educacionais daquela
escola – o que é consistente com a hipótese de que os estudantes são percebidos e enquadrados pelos adultos conforme expectativas sociais que podem reforçar estereótipos e gerar ciclos reforçadores de desigualdades.
A terceira onda da pesquisa (set/2023) tentou mergulhar a fundo nas questões sobre preenchimento das informações do Censo Escolar, hoje a principal ferramenta à disposição do Ministério da Educação, das Secretarias estaduais e municipais de Educação e dos pesquisadores para incorporar marcadores de desigualdades às políticas educacionais. Mais de 73% das escolas reportam que é o(a) Secretário(a) do diretor da escola quem preenche os dados no sistema, em mais de 65% dos casos sem consultar os estudantes sobre sua raça ou cor (apenas cerca de 15% reportam consultar todos os alunos no processo).
Essas discrepâncias são patentes também na classificação de estudantes com algum tipo de deficiência. Segundo o Censo Escolar de 2022, 3,2% das matrículas do Ensino Básico brasileiro são de alunos da educação especial. Mas será essa a proporção de estudantes com alguma deficiência ou transtornos de aprendizagem nas escolas brasileiras? 50% das escolas reportam que os alunos são classificados com alguma deficiência intelectual no ato da matrícula apenas quando apresentam laudo médico, mas que têm conhecimento de mais estudantes na escola com essa condição embora sem laudo.
A falta de informações é crítica em todos os casos. Subestimar a fração de escolas sem conexão ou com velocidade de download criticamente baixa pode acabar destinando recursos insuficientes à superação desse gargalo. Superestimar a proporção de estudantes pretos em escolas mais vulneráveis, ou seguir com informações não preenchidas para 30% deles (a proporção típica sem informação de raça no Censo Escolar), pode deixar de pautar políticas importantes para diminuir desigualdades educacionais, e ainda acabar levando à destinação incorreta de recursos – já que essas desigualdades devem pautar também a redistribuição de recursos do Fundeb a partir do novo PNE em discussão. Por fim, subestimar a proporção de estudantes com deficiências e transtornos de aprendizagem não apenas prejudica a capacidade de ofertar estratégias efetivas para o avanço da aprendizagem – incluído a alfabetização na idade certa – como também, no limite, inviabiliza a garantia do direito universal à educação de qualidade.
Diante disso, apoiar pesquisas amostrais como o Equidade.info deveria ser prioridade para organizações públicas e privadas comprometidas com o enfrentamento de iniquidades educacionais a partir de uma base sólida de evidências.