Neste mês de maio, o casamento entre pessoas do mesmo sexo completa 10 anos no Brasil. Ele foi inscrito na ordem jurídica brasileira não pelo Congresso, nem pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que adotou uma resolução proibindo que cartórios de todo o país recusassem a habilitação para o casamento ou o pedido de conversão da união estável em casamento por casais de pessoas do mesmo sexo. Presidido à época pelo ministro Joaquim Barbosa, o CNJ, que tem apenas competências administrativas, entendeu por maioria que a resolução era uma medida importante, mas adicional, para a implementação da decisão de 2011 do STF a propósito das “uniões homoafetivas”.
O casamento é, ao lado do batismo, o sacramento mais importante para a Igreja Católica, e o catolicismo não só é ainda a religião da maioria dos brasileiros, mas, principalmente, uma espécie de marca d’água sobre a qual se dão as interações sociais no Brasil a despeito da declaração de fé dos brasileiros, como já demonstrou a literatura socio-antropológica. Em artigo recém-publicado na Novos Estudos, pesquisadores do temático “Pluralismo religioso e diversidades no Brasil contemporâneo” mostraram como a inscrição do casamento na ordem jurídica brasileira se deu no bojo de um processo de dessacramentalização, que tem na Lei do Divórcio, de 1977, e na promulgação da Constituição de 1988, marcos importantes.
Porém, a dessacramentalização não teria implicado a dessacralização do casamento. Enquanto o primeiro conceito remete à desregulamentação da vida social frente à máquina burocrática do poder católico, o segundo alude à permanência de um valor simbólico que diviniza as relações conjugais para além de vínculos religiosos institucionais. Por isso, queremos mostrar nos parágrafos seguintes que, na década transcorrida, emergiram disputas acirradas no debate público em torno da “família” e, ao mesmo tempo, um consenso tácito em torno da conjugalidade homossexual por parte da sociedade brasileira.
O período pós-2013 parece ter testemunhado o crescimento do número de pessoas favoráveis à regulação jurídica da conjugalidade homossexual, à igualdade de suas formações domésticas em relação a casais heterossexuais e à sua denominação de família na sociedade brasileira
Desde 2013 o casamento entre pessoas do mesmo sexo tem sido objeto de disputa no debate público brasileiro, e atores que se autodeclaram religiosos e ou conservadores, no Congresso e fora dele, têm sido protagonistas nesse processo. Eles contestam seja a integração de unidades domésticas formadas por pessoas do mesmo sexo na família, seja a forma como essa integração se deu no Brasil, em debates sobre educação, saúde, direitos humanos.
O projeto de lei conhecido como Estatuto da Família, também de 2013, é um ícone do primeiro conjunto de contestações. Em seu cerne está a ideia de que o nome família é socialmente reservado ao núcleo formado por homem e mulher, ou por um dos pais com prole, que remeteria à relação heterossexual. Homem e mulher, no caso, entendidos como entidades biológicas.
Já a segunda contestação encontra no termo “ativismo judicial” uma das suas formas. Em seu cerne está a ideia de que o modo como se determinou que casais formados por pessoas do mesmo sexo constituiriam família para fins de direito extrapolava as competências do STF e as extrapolava ainda mais a decisão do CNJ sobre o casamento.
No debate público brasileiro, ambas as contestações têm sido até hoje comumente associadas a evangélicos, em parte pela atuação da Frente Parlamentar Evangélica e pela projeção midiática de lideranças suas que não têm atuação parlamentar. Em artigo sobre o chamado “voto evangélico”, ressaltamos a importância de a análise social se descolar das estratégias de visibilização dos próprios agentes e olhar para as sombras que elas produzem, como, por exemplo, a atuação de autodeclarados conservadores católicos.
Entre esses, o influenciador Bernardo Küster, discípulo de Olavo de Carvalho, e o Centro Dom Bosco se opõem sistematicamente a reconhecer casais formados por pessoas do mesmo sexo como família. Criticam a abertura do papa Francisco a que as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo sejam juridicamente reguladas e, consequentemente, tenham proteção do direito.
Bruno Bimbi, ativista LGBT argentino e ex-assessor de Jean Wyllys no PSOL, mostra que, nos anos 2000, o movimento LGBT+ de diversos países percebia o apoio de lideranças religiosas à união estável como uma concessão que tinha em vista afastar homossexuais do casamento. Seria uma forma de reduzir a questão aos direitos e reservar o casamento propriamente dito a casais heterossexuais. Já Bernardo Küster, o Centro Dom Bosco e leigos católicos autodeclarados conservadores entendem que, sem “ativismo judicial”, não é preciso conceder nada, pois o Congresso espelha a maioria da sociedade e essa maioria é cristã, logo, seria contrária ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
No plano dos fatos, contudo, o período pós-2013 parece ter testemunhado o crescimento do número de pessoas favoráveis à regulação jurídica da conjugalidade homossexual, à igualdade de suas formações domésticas em relação a casais heterossexuais e à sua denominação de família na sociedade brasileira. Mas o próprio casamento é inscrito no direito brasileiro no bojo de uma transformação social que tem início nos anos 2000, ou seja, sua inscrição no direito brasileiro também é efeito de uma mudança em curso.
De um lado, aquele consenso majoritário atualmente na sociedade brasileira é refletido em falas da ex-ministra dos Direitos Humanos e pastora Damares Alves. Para surpresa de muitos, em mais de uma oportunidade Damares declarou que “famílias homoafetivas” eram um fato e, portanto, as políticas públicas deveriam tratá-las como iguais às famílias heterossexuais e monoparentais.
De outro lado, estudos de pesquisadores do projeto temático sugerem que fenômenos aos quais os agentes sociais vinculam às categorias direitos e religião contribuíram para a produção de um consenso, se não majoritário à época, ao menos suficiente para que o STF e o CNJ pudessem tomar parte na mudança de enquadramento das conjugalidades de modo não disruptivo. No debate sobre “o casamento de pessoas do mesmo sexo”, os agentes teriam encontrado nos direitos e na religião recursos discursivos para deslocar o cerne da família da reprodução para os afetos e comunicar com eficácia à justiça a demanda de casais homossexuais. É neste contexto que despontam na cena pública novas terminologias como homoafetividade.
O terreno dos afetos possibilita que agentes autodeclarados religiosos e não religiosos usem os direitos e a religião como linguagens pelas quais a família se transmuta de célula mater da sociedade em espaço para a felicidade e o florescimento espiritual, e o casamento, de sacramento em ritos e rituais que possibilitam os agentes intercambiar ambiguamente entre o sacro e o secular. Essa é uma história que já começou a ser contada. Pesquisas de campo elaboradas no âmbito do projeto temático “Religião, direitos e secularismo” entre 2015 e 2022 mostram que a transmutação do casamento teria aberto espaço para a benção de casais homossexuais em cerimônias públicas e para cristãos demandarem o reconhecimento jurídico dessas uniões com o mesmo nome quando o próprio movimento LGBT+ preferia empunhar outras bandeiras.