O ciclo de Políticas Públicas é um modelo de larga utilização nos textos introdutórios no Campo de Públicas para ilustrar, de modo didático, como surge e se implementa uma política e programa governamental. Segundo o modelo clássico, políticas e programas passariam por um fluxo circular de etapas- quatro a sete, dependendo do autor 1 - da sua emergência à avaliação de seu mérito. Mais detalhadamente, o processo se inicia com o surgimento do Debate Público sobre uma demanda ou problemática coletiva pela iniciativa de movimentos sociais, da mídia, de parlamentares, de candidatos em disputa de uma eleição e outros atores políticos (Figura 1). A ocorrência de um evento de grande repercussão social – como epidemia, inundação, etc – ou lançamento de estudo ou de estatísticas que dimensionem e/ou caracterizem a demanda ou problemática podem também contribuir para amplificar esse debate.

O reconhecimento da demanda ou problemática como questão pública e sua inserção na agenda de governo é o segundo passo no ciclo. Para inscrição na Agenda conta muito a pressão dos atores políticos e sua habilidade em influenciar o governo em priorizar uma questão específica dentro de tantas existentes. Também influenciam tal reconhecimento a existência de leis que assegurem um direito ou serviço público ainda não atendido – garantia do acesso a creches ou à alimentação, por exemplo- ou a prevalência de determinados sentimentos e valores públicos na sociedade- como a necessidade de reparar diferenças históricas de origem social por meio de cotas de ingresso nas universidades públicas, por exemplo 2.
A etapa seguinte – Formulação de Políticas ou Desenho de Programas – compreende os processos e atividades relacionados à construção de possíveis soluções e encaminhamentos para lidar com a questão recém-legitimada na lista de prioridades de governo. Ainda que diversas demandas ou problemáticas possam ser discursivamente encampadas na pauta governamental, há aquelas que ganham maior centralidade por sua viabilidade política, exequibilidade financeira, facilidade operacional de implantação ou percepção de impacto na sociedade. Problemáticas complexas ou demandas públicas de larga monta podem perder prioridade frente a outras questões equacionáveis mais rapidamente ou com menos recursos. Mobilização e pressão dos atores- inclusive os burocratas dentro do governo- também influenciam na seleção da agenda governamental de fato, prioritária 3. Muitos programas são adaptações de iniciativas e projetos anteriores, já testados em municípios, estados ou outros países. Naturalmente, há também possibilidade de elaboração de um novo programa em escritórios de planejamento e laboratório governamentais de inovação, tão mais exitosos quanto mais estejam abertos à contribuição de especialistas, dos burocratas de nível de rua e dos representantes dos públicos-alvo do programa na sociedade 4.
É preciso, então, em sequência escolher o rumo a seguir, decidindo-se por uma, algumas ou nenhuma das alternativas desenhadas. Trata-se da etapa de Tomada de Decisão quanto à política ou programa a ser lançado, do escopo de produtos e serviços a serem entregues, dos públicos-alvo prioritários e a escala de cobertura dos mesmos. Evidências técnicas são certamente importantes no processo decisório público, mas estão longe de serem suficientes seja para dar conta da complexidade das questões públicas tratadas 5. Os argumentos técnicos devem ser contrapostos à disponibilidade de recursos, à viabilidade política do momento e à agenda política do decisor eleito ou legitimado para o processo. A decisões pública é inexoravelmente política, orientadas por valores, ideias e crenças compartilhadas na sociedade, influenciada pelos interesses dos atores políticos com maior poder nos governos e, naturalmente, moldadas pelas institucionalidades que lastreiam a ação governamental.
O modelo do ciclo de políticas segue sendo um recurso analítico útil, que deve ser visto mais pela natureza das diferentes atividades envolvidas na formulação de políticas públicas do que pela ordem cronológica rígida ou limites fronteiriços com que essas supostamente se dispõem
A quinta etapa – Implementação de políticas e programas escolhidos – envolve os esforços de alocação de recursos financeiros, estruturação dos arranjos operacionais pelo território para alcançar os públicos-alvo, formação e capacitação de equipes para entrega dos produtos e serviços e execução de outras atividades previstas nas etapas anteriores. Esta é fase que a política ou programa passa a maior parte do tempo de sua vida, em sucessivos aprimoramentos, situação muito distinta da atividade fortuita- com começo-meio-fim - sugerida no ciclo clássico. A implementação de um programa envolve alinhamento de muitas engrenagens internas, de milhares de pessoas operando e entregando diversos produtos diferentes, em territórios e públicos muito distintos. Em um país tão desigual como o Brasil, não se pode esperar que programas sejam implementados seguindo um manual com todas as prescrições antecipadas no escritório central de planejamento, com atividades realizadas ao mesmo ritmo – e com efeitos ao mesmo tempo- ao Norte ou ao Sul do país, nas capitais ou no interior, nos centros das cidades, nas suas periferias ou zona rural 6.
Ao final do ciclo, é preciso analisar se os esforços empreendidos por meio da política ou programas estão atuando no sentido esperado de atender a demanda originária ou mitigar o problema motivador da ação governamental. É a última etapa do ciclo, a de Avaliação, em que se realizam pesquisas para identificar a necessidade de realizar mudanças nos programas implementados para garantir sua efetividade, descontinuá-los ou então adaptá-los a uma nova realidade, reiniciando o ciclo 7. Essa etapa tende a ser reputada como a mais relevante do ciclo por parte da comunidade epistêmica da área e por círculos da Administração Pública, por sua suposta função de legitimar tecnicamente a política ou programa desenhado. Mas isso é antes um desejo que uma necessidade política ou realidade fática 8.
Se é fato que o ciclo de políticas públicas é um modelo elegante e didático para ilustrar os diferentes tipos de atividades e demandas por informação, também é fato que sugere uma linearidade sequencial e um processamento técnico-político pouco realista de como as demandas públicas induzem e produzem soluções programáticas. É um modelo que responde bem à visão racionalista da administração pública 9. Em mãos, mentes e corações de tecnocratas, há sempre o risco de se tomar o modelo pela realidade e, pior ainda, de sugerir que a realidade deveria se comportar como o modelo(!). Fato é que os problemas decisórios públicos envolvem muita incerteza seja no presente, seja nas consequências futuras das escolhas; há muitas lacunas de conhecimento; há dilemas éticos acerca de prioridades políticas; as viabilidades política e operacional podem ser muito distintas para as soluções técnicas elegíveis.
O modelo do ciclo também sugere uma consensualidade de opiniões pouco factível em contextos democráticos. A administração pública, seus gestores, os atores políticos, movimento social e outros agentes não atuam de forma tão sistemática e cooperativa, como se estivessem todos envolvidos na resolução de um problema consensualmente percebido, empregando métodos racionais e objetivos na busca de soluções ótimas, de acordo com uma sequência cartesiana de etapas bem delineadas 10. Na realidade, as políticas públicas configuram-se como um processo que envolve a interação de muitos agentes, com diferentes interesses, com apoios entusiastas de alguns e resistências igualmente intensas de outros.
Outra crítica ao ciclo é que ele parece sugerir que programa público se assemelha ao de projeto de ambições modestas, voltado a resolver problemas circunscritos, de fôlego curto, com começo-meio-fim, como em um círculo PDCA de desenvolvimento de produto na indústria. Mas programas públicos não são projetos dedicados a problemas específicos, com duração e escopo limitados. São empreendimentos governamentais para atendimento de demandas da sociedade e para reverberação de valores societais, questões que têm uma duração, em geral, muito ampla como ilustram, entre outros, os serviços de educação básica, saúde pública, alimentação escolar, previdência social. Programas passam por diversas fases em sua implementação ao longo do tempo, buscando superar os obstáculos que se apresentam e os problemas nos territórios em que operam e, se bem sucedidos, vão ganhando escala de cobertura ou ampliando seu escopo de objetivos e produtos.
Com todas essas críticas o modelo do ciclo de políticas segue sendo um recurso analítico útil, que deve ser visto mais pela natureza das diferentes atividades envolvidas na formulação de políticas públicas do que pela ordem cronológica rígida ou limites fronteiriços com que essas supostamente se dispõem 11. Como todo modelo metodológico e interpretativo resistente ao tempo e às críticas, suas virtudes em simplificar aspectos da realidade são compensadas por suas qualidades em destacar outros.
Nesse sentido, enxergar o surgimento e implementação de uma política ou programa como um fluxo processual espiralado aberto – e não circular fechado- pode ser uma adaptação ad hoc interessante ao modelo (Figura 2). Essa proposta preserva a contribuição do ciclo em apresentar o processo nas fases iniciais e seus conteúdos específicos: Demanda motivadora, Inscrição na Agenda, Desenho de soluções e Decisão técnica-política. Mas inova ao reconhecer a centralidade simbólica e fática da Implementação no processo e ao recolocar a Avaliação como uma atividade permanente na identificação das dificuldades de implementação e na apuração dos efeitos concretos da ação governamental. Nesse novo modelo as fases de implementação de uma política ou programa - implantação, ampliação de cobertura, incorporação de novos objetivos e entregas etc- são entremeadas por processos avaliativos de diferentes naturezas – avaliação de processos, de resultados, diagnósticos de públicos-alvo potenciais- movendo a espiral em sentido centrífugo, circular ou centrípeto 12.
A Espiral da Política ou Programa proposta rompe, por fim, a perspectiva positivista e tecnocrática do ciclo clássico ao retirar da Avaliação a suposta legitimidade e neutralidade técnica de “julgamento” acerca dos rumos da ação governamental. Não é o veredito de um estudo ou pesquisa avaliativa que enseja diretamente a ampliação, estabilidade ou retrocesso de uma política ou programa, mas sim a resultante política da movimentação de interesses de atores políticos, dentro do espaço conferido pelas regras institucionais e o calor das disputas de ideias na sociedade.