A educação brasileira é marcada por muitas desigualdades – socioeconômica, de gênero, geográfica, etc. A questão da cor/raça dos estudantes não só consiste em mais uma dessas desigualdades, como também atravessa todas as demais. Um estudo nosso, do centro de pesquisas Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), mostra que, mesmo quando são comparados os desempenhos de alunos brancos e pretos de uma mesma classe social, seja ela alta ou baixa, os brancos, em geral, levam vantagem. No 5º ano, havia 74.8% de estudantes brancos de alto nível socioeconômico (NSE) com aprendizado adequado em Língua Portuguesa no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2019; entre os estudantes pretos também de NSE alto, o índice foi de 48.9%. Na mesma etapa e disciplina, mas entre alunos de baixo NSE, os percentuais foram 52% e 32.9%, respectivamente.
Já um estudo de Fernando Botelho, Ricardo Madeira e Marcos A. Rangel 1 mostrou que estudantes pretos tendem a receber notas mais baixas em sala de aula em relação aos colegas brancos, por mais que apresentem o mesmo desempenho no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp).
É uma obviedade, mas importante de ser enfatizada: essas desigualdades de desempenho não têm qualquer relação com inteligência ou com a capacidade de diferentes grupos raciais e étnicos de aprender. São fruto, sobretudo, do racismo estrutural e de suas manifestações, via estigmas, carência de incentivos, menores expectativas e outras violências sofridas por estudantes negros de todas as idades. Isso tem impacto não apenas na trajetória e nos resultados escolares deles, mas em diversos aspectos de sua vida.
Para contribuir com a construção de uma educação (e sociedade) mais equitativa, nós, do Iede, em parceria com a Fundação Lemann e o Centro Lemann, escrevemos um guia para realizar um bom diagnóstico de equidade racial. O documento, disponível para download gratuito no site do Iede, visa ajudar secretarias de Educação, em especial, mas também gestores escolares a identificar e dimensionar as desigualdades raciais existentes em suas redes de ensino ou escolas. A intenção é que, a partir de um diagnóstico consistente, sejam elaboradas estratégias e ações adequadas a cada realidade — sempre com foco em promover a equidade racial.
O guia parte de um breve panorama sobre a origem das desigualdades raciais no país, abordando desde o período imperial, com a escravatura e a proibição de pessoas negras de acessar a escola, até os dias atuais, com a implementação de importantes (mas não suficientes) leis para a luta antirracista. Entende-se como fundamental a apresentação desse contexto para evitar interpretações equivocadas, que possam de alguma maneira gerar ainda mais estigmas em relação a estudantes negros, indo totalmente na contramão do objetivo.
Um ponto importante e que merece ser esclarecido é que um bom diagnóstico não necessariamente precisa ser feito a partir das bases de dados de avaliações externas, como o Saeb, ou do Censo Escolar. Muitas vezes, os dados internos da rede de ensino são suficientes, ou até mesmo os mais indicados, para as informações que se pretende obter
Antes de adentrar nos capítulos sobre os dados disponíveis e a melhor maneira de tratá-los, o documento traz alguns desafios com os quais os gestores podem se deparar e que podem dificultar a realização de um bom trabalho. Entre eles, estão a escassez de profissionais capacitados para a análise de dados, a alta rotatividade docente e as diferentes formas de declaração de cor/raça nas bases de dados. Muitas vezes, as equipes também encontram resistência à realização desse tipo de estudo por causa do mito da democracia racial, isto é, uma ideia bastante difundida, mas equivocada, de que a sociedade brasileira se fundamenta na plena igualdade racial. Assim, muitos alegam — sem embasamento — que as desigualdades são apenas em relação ao nível socioeconômico dos estudantes e que, por isso, não haveria a necessidade de um diagnóstico de equidade racial.
Superado esse momento inicial, é importante frisar que, quanto mais completo for o diagnóstico, melhor. Por isso, idealmente, deve-se buscar realizar tanto o diagnóstico quantitativo, em que a partir do tratamento e da análise dos dados, obtêm-se uma visão geral da situação da rede de ensino; como o qualitativo, em que o olhar é subjetivo e a intenção principal é compreender o fenômeno estudado por meio das experiências, impressões e reflexões das pessoas pesquisadas (no caso, estudantes, professores, coordenadores pedagógicos, gestores etc.). Essa etapa pode ser feita a partir da aplicação de questionários, realização de grupos focais, entrevistas em profundidade e outras técnicas semelhantes.
Um ponto importante e que merece ser esclarecido é que um bom diagnóstico não necessariamente precisa ser feito a partir das bases de dados de avaliações externas, como o Saeb, ou do Censo Escolar, produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Muitas vezes, os dados internos da rede de ensino são suficientes, ou até mesmo os mais indicados, para as informações que se pretende obter. Por exemplo: a análise das notas em provas aplicadas pelas escolas permite identificar eventuais padrões no desempenho, conforme a cor/raça dos estudantes, e se há algum grupo racial que, reiteradamente, tem obtido pontuações mais baixas. Já a partir da investigação dos registros disciplinares é possível saber quais estudantes estão recebendo mais advertências ou tendo seus responsáveis acionados com maior frequência, e, novamente, se existe algum viés nesse sentido.
Concluídas a coleta e a análise dos dados, chega-se a uma etapa crucial do processo e que deve ser tratada com cautela: a divulgação dos resultados do diagnóstico. Primeiramente, é preciso ter em mente que os dados sobre os indivíduos são confidenciais e servem apenas para fins estatísticos. Portanto, em apresentações ou reuniões com a comunidade escolar, educadores e estudantes jamais devem ser abordados de forma individualizada – isto quer dizer que, mesmo que não sejam nominalmente citados, é preciso muito cuidado para não haver o compartilhamento de informações que permitam a sua identificação. Em linhas gerais, pode-se dizer que, no nível da escola, é imprópria a divulgação de dados, tanto quantitativos quanto qualitativos, já que as pessoas que participaram da pesquisa podem se reconhecer – ou ser reconhecidas – nos números apresentados. Já no nível do município ou do estado, a depender do número de respondentes e desde que as informações não permitam sua identificação, os resultados de diagnósticos quantitativos podem ser compartilhados.
Tão importante quanto a realização do diagnóstico são as ações tomadas a partir dele. Nesse sentido, sugerimos a criação de indicadores para monitorar os desafios apresentados
Há outros cuidados importantes para evitar estigmas e ajudar a engajar a comunidade escolar na busca por soluções para os desafios encontrados: explicar, de forma breve, como a pesquisa foi feita e dos dados coletados e, junto aos resultados, divulgar informações contextuais. Isso visa contribuir para que a comunidade compreenda que o desempenho dos estudantes (ou sua trajetória escolar, etc.) é marcado pelas oportunidades que eles têm ao longo da vida e pelas situações, adversas ou não, que enfrentam. Vale reiterar que eventuais desigualdades não têm relação com capacidades inerentes de aprender.
Por fim, tão importante quanto a realização do diagnóstico são as ações tomadas a partir dele. Nesse sentido, sugerimos a criação de indicadores para monitorar os desafios apresentados. Estes podem promover a equidade de forma implícita, ao definir ações e metas para reduzir o percentual de estudantes com menor desempenho ou trajetórias mais irregulares, como é o caso do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (Idesp). Ou ainda podem promover equidade de forma explícita, ao monitorar o desempenho (ou qualquer outro indicador) especificamente de acordo com a cor/raça dos estudantes.
A criação de indicadores é um primeiro passo importante, mas não deve ser o único. Junto aos estudantes mais vulneráveis e às suas famílias, a rede de ensino deve estabelecer estratégias de enfrentamento às desigualdades mapeadas — especialistas ressaltam que qualquer plano de ação nesse sentido nunca deve ser implementado para o público alvo, mas sempre com ele. Entre essas ações, podem estar, por exemplo, a formação de professores e gestores para identificar e coibir o racismo no cotidiano escolar (seja nas palavras, gestos ou silêncios) e ações de busca ativa. Nunca é demais ressaltar: buscar uma educação mais equitativa não é uma tarefa simples, mas é imprescindível e deve ser um compromisso de todos.