FOTO: Bruno Kelly/Reuters - 26.out.2023
FOTO: Bruno Kelly/Reuters - 26.out.2023

Em seca histórica no Amazonas, a vida aquática dos rios entra em colapso

Susana Braz-Mota, Adalberto Luis Val e Tiago da Mota e Silva
Altas temperaturas e menor disponibilidade de oxigênio nas águas são estressores significativos para além da capacidade de adaptação dos animais. Mudança climática explica o que é a pior seca registrada na bacia amazônica

Ao fim de setembro e passando por todo o mês de outubro, uma paisagem estarrecedora dominou os arredores de Manaus, a capital do Amazonas. Onde até pouco tempo turistas fotografaram a imensidão do encontro das águas, entre o Rio Negro e o Solimões, bancos de areia surgem, evidenciando o que se tornou a estiagem mais intensa já registrada na bacia. Segundo dados do Porto de Manaus, o nível do Rio Negro chegou a um nível abaixo de 13 metros, levando a impactos negativos observáveis de imediato, sobretudo nas mais de 150 mil famílias afetadas pela seca. É mais do que seguro afirmar: o Amazonas e todos os seus 62 municípios estão vivendo um fenômeno climático extremo.

Com objetivo de monitorar a situação, uma equipe de cientistas do Laboratório de Ecofisiologia Molecular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônica (LEEM-Inpa) foi ao Município de Careiro Castanho, a cerca de 80 km de Manaus. Por lá, lagos menores já estavam completamente secos, trazendo impactos às comunidades ribeirinhas, que dependem dos rios para o transporte. Onde havia abundância de água, encontrou-se muitos peixes mortos, bem como jacarés e até mesmo tracajás. Essa paisagem fúnebre se repete em outros locais, como no lago Tefé, a 521 km da capital, onde foram encontrados mais de cem botos falecidos por uma equipe de pesquisadores do Instituto Mamirauá.

O forte período de estiagem deixa o nível dos rios mais baixos. Consequentemente, o menor volume somado a maior incidência solar permitem que as temperaturas nas águas cheguem a níveis muito acima do comum. Em geral, espera-se que a temperatura nos rios e lagos da Amazônia variem entre 28 e 31ºC. Em Janauacá, mediu-se pontos de águas consideravelmente mais quentes, entre 31,8 chegando até 38ºC. Em Tefé, o Instituto Mamirauá chegou a registrar 40ºC. Habitats nessas condições são mortais para parte relevante da comunidade aquática da Amazônia.

O impacto da temperatura na vida dos peixes

Peixes são animais ectotérmicos. Isto é, eles não conseguem manter a temperatura do próprio corpo em uma faixa ideal e, portanto, são vulneráveis a aumentos da temperatura ambiental. Por isso que, quando compramos um peixinho de estimação, é preciso tomar muito cuidado em mantê-lo no aquário. O mesmo vale para os peixes amazônicos. A temperatura média em que o tambaqui vive, por exemplo, é de 31ºC. Por outro lado, há um limite de temperatura que esses animais são capazes de suportar -- e ultrapassá-lo é fatal. O próprio tambaqui apresenta alta resistência a temperatura, registrando o maior limite observado por cientistas: 42ºC. No entanto, esse é um valor medido em laboratório, sendo possível que, em seu habitat natural, o limite seja menor.

O aumento das temperaturas das águas também está associado à menor quantidade de oxigênio dissolvido nos rios, lagos e igarapés – o que cientistas chamam de hipóxia. Temperatura alta e hipóxia são uma soma de fatores estressantes para muitos peixes amazônicos: quanto mais quente, mais intensos ficam seus metabolismos que, por sua vez, requerem mais oxigênio, demandando uma grande quantidade de energia do animal. Em um dos pontos do lago do Janauacá, encontrou-se águas com nível de 0,38 miligramas de oxigênio por litro - ou seja, quase não há oxigênio na água para os peixes respirarem.

Uma pesquisa 1 testou uma exposição de 10 dias a um habitat com essas condições em 13 espécies de peixes amazônicos. Destas, duas morreram em até 33 ºC. Para outras nove, 35 ºC foram letais e apenas duas sobreviveram a temperaturas acima disso. São poucos os peixes conhecidos que sobreviveriam a temperaturas acima dos 40ºC (Tabela 1), o que explica o carpete de animais mortos encontrado no lago do Janauacá e em outras localidades. Altas temperaturas como essa são prejudiciais até mesmo a mamíferos aquáticos - que são endotérmicos, regulam a própria temperatura -- como no caso dos botos encontrados mortos em Tefé.

Lista de espécies de peixes amazônicos

Para fonte completa dos dados da tabela, ver notas 2 e 3.

Mesmo aqueles peixes mais resistentes a temperaturas altas irão, provavelmente, passar por distúrbios fisiológicos devido ao estresse oxidativo. Outra pesquisa 4 expôs três espécies ornamentais a cenários extremos de aquecimento global, com a ajuda de equipamentos que simulam ambientes com temperaturas 4,5 ºC mais altas que as atuais e com maior concentração de gás carbônico na atmosfera. Todas elas apresentaram dificuldades severas.

Tudo isso permite afirmar que, neste instante, em meio à seca, muitos dos peixes da Amazônia se encontram em severo risco de ter suas populações reduzidas ou, até mesmo, de extinção 5. E isto é uma péssima notícia para todo o bioma. Afinal, esses animais têm um papel ecossistêmico fundamental, sendo importantes dispersores de sementes e responsáveis por carregar nutrientes entre diferentes áreas que ajudam a tornar os solos mais férteis.

Para além do colapso ambiental, a maior taxa de mortalidade de peixes representa, também, uma crise socioeconômica. Afinal, a região amazônica é conhecida como uma das maiores consumidoras de peixe do mundo, com uma ingestão de 135 a 292 quilos de peixe por ano e por pessoa, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). A seca impõe, portanto, um grave risco à segurança e à soberania alimentar de toda a Amazônia Legal.

A seca está intimamente ligada à mudança climática

A gravidade desta seca não deveria ter pego autoridades e lideranças brasileiras completamente de surpresa. O principal fator que explica a atual estiagem é o fenômeno climático El Niño, um aquecimento das águas do oceano Pacífico que tem por consequência a dificuldade da formação de frentes frias especialmente no Norte e no Nordeste Brasileiros. Modelos previam a incidência do fenômeno desde dezembro de 2022 6, mesmo considerando a dificuldade em elaborar uma previsão como esta. Em junho deste ano, outra publicação 7 considerou haver uma probabilidade pequena (4-7%) de o fenômeno não ocorrer. Antes de abril do ano que vem, a probabilidade das temperaturas serem razoáveis no Pacífico ainda é relativamente baixa 8, 9.

Porém, o El Niño deste ano está sendo agravado por um aumento médio de temperaturas nos Oceanos que já vinha ocorrendo, inclusive no Atlântico 10, conforme acompanhamento realizado por oceanógrafos. O El Niño, portanto, empurrou o que já eram águas quentes a temperaturas em níveis recordes 11.

O aquecimento dos oceanos é um dos efeitos das mudanças do clima relacionadas às atividades humanas altamente emissoras de gases de efeito estufa. Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), eventos extremos, como a seca atual na bacia do Amazonas, podem se tornar mais intensos, mais frequentes e durar mais tempo conforme a temperatura média do planeta se aproxima dos 1,5ºC mais quentes.

Esse horizonte exige ação estratégica e urgente no sentido de evitar que secas, como esta, se repitam na mesma intensidade no futuro próximo na medida em que o aquecimento do planeta continua a avançar. Há estudos que apontam como, no padrão atual de emissões de gases de efeito estufa, as temperaturas médias podem passar do limite de 1,5ºC estabelecido no Acordo de Paris ainda nesta década e chegar até 2ºC até 2050 12.

Especificamente para o estado do Amazonas, esses cenários apontam para novas e mais frequentes ondas de calor com estresses ainda mais significativos às águas dos rios e lagos 13. Em um estado brasileiro que depende tanto das águas e de seus peixes, uma tragédia anunciada se desenha: esses animais já vivem, antes mesmo da seca, perto dos seus limites de temperatura e apresentam capacidade limitada de aclimatização em um período tão curto de tempo 14.

O aumento de temperaturas é um fenômeno global e, portanto, não há esforço isolado que dê conta do desafio de contê-lo. No entanto, nos limites do próprio estado do Amazonas, a atual seca deve servir como alerta contra iniciativas que facilitem o avanço do desmatamento na região. Há evidências fartas que demonstram como áreas desmatadas na Amazônia se transmutam em habitats frágeis no que tange às comunidades aquáticas que abrigam 15. Além disso, estima-se que 28% da umidade da Amazônia é evaporada localmente, pela própria floresta. Logo, perder mais cobertura vegetal pode contribuir para alongar ainda mais os períodos de seca 16.

Susana Braz-Mota é bióloga, doutora Biologia de Água Doce e Pesca Interior e pós-doutoranda em Ciências Biológicas pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

Adalberto Luis Val é biólogo, doutor em biologia de água doce e pesca interior. Atualmente coordena o INCT ADAPTA e estuda adaptações da biota aquática da Amazônia à mudanças ambientais, incluindo mudanças climáticas.

Tiago da Mota e Silva é jornalista, doutor em Comunicação e Semiótica e bolsista DTI-A pelo INCT-ADAPTA, onde desenvolve um projeto de comunicação científica sobre o impacto das mudanças climáticas nos biomas amazônicos.

Os artigos publicados na seção Ponto de vista do Nexo Políticas Públicas não representam as ideias ou opiniões do Nexo e são de responsabilidade exclusiva de seus autores. A seção Ponto de vista do Nexo Políticas Públicas é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional. Para participar, entre em contato por meio de pontodevista@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.

Parceiros

AfroBiotaBPBESBrazil LAB Princeton UniversityCátedra Josuê de CastroCENERGIA/COPPE/UFRJCEM - Cepid/FAPESPCPTEClimate Policy InitiativeMudanças Climáticas FAPESPGEMAADRCLAS - HarvardIEPSISERJ-PalLAUTMacroAmbNeriInsper