Nos últimos anos, temos enfrentado uma sucessão de crises. À experiência violenta da pandemia se somam ao redor do mundo um aprofundamento de desigualdades socioterritoriais, a erosão de instituições democráticas, assim como a ascensão de discursos e práticas discriminatórias e persecutórias contra populações marginalizadas. Permeando tudo isso, há o agravamento do colapso climático, um fenômeno que compromete os sistemas urbanos e ambientais, afetando de forma direta e grave as nossas próprias condições materiais de existência, na forma de secas extremas, inundações e alagamentos, deslizamentos de terra e outros desastres, que produzem efeitos desiguais marcados por fortes componentes territoriais, raciais e de gênero.
No entanto, a articulação destes problemas a partir da perspectiva global traz efeitos complicadores sob uma ótica política. Os desafios são apresentados como exageradamente amplos, sem que haja espaços de tomada de decisão capazes de oferecer resistência à magnitude dos problemas e apresentar alternativas. O caso das mudanças climáticas ilustra isso, na medida em que é, muitas vezes, difícil para cada pessoa entender como a sua ação individual influencia em tendências globais de aumento de emissões e de temperatura. Ademais as COPs, como principal fórum internacional para pensar estratégias de ação, ainda são eventos distantes da população. Este afastamento faz com que as possibilidades de tomada de consciência sobre a questão e desenvolvimento conjunto de soluções sejam muitas vezes abstratas e difíceis de serem estruturadas em termos práticos.
Para podermos romper com esse bloqueio e estabelecer os vínculos necessários para construção de projetos comuns, nós do Instituto ZeroCem queremos fomentar formas alternativas de encarar esta complexidade. Priorizamos um olhar sobre a dimensão territorial, por entender que o nível local permite uma apreensão mais completa dos desafios, de forma a auxiliar na orientação política necessária para abordá-los de uma perspectiva sistêmicas.
Compartilhamos da visão de que as crises globais que enfrentamos não acontecem simplesmente em uma esfera supranacional, deslocada do nosso dia a dia. Elas possuem elementos tangíveis que se expressam nas vivências individuais e coletivas, marcadas por desigualdades estruturais
Compartilhamos da visão de que as crises globais que enfrentamos não acontecem simplesmente em uma esfera supranacional, deslocada do nosso dia a dia. Elas possuem elementos tangíveis que se expressam nas vivências individuais e coletivas, marcadas por desigualdades estruturais. Por isso, acreditamos que no âmbito da territorialidade e do engajamento comunitário reside uma energia de mobilização e inovação que nos auxilia a reestruturar o entendimento dos vínculos entre nós e o nosso entorno, iluminando como estratégias de ação intersetoriais e multiescalares podem destravar chaves de solução desde o nível mais local até a esfera internacional.
Como pesquisadores com trajetória na investigação de dinâmicas socioespaciais, nossa visão é de que pautas cotidianas tais como os de moradia, transporte, consumo, descarte de lixo são parte integral e essencial dos esforços “macro” de transição socioambiental justa, como a descarbonização da energia, o fomento à economia circular, e a eliminação das profundas desigualdades e vulnerabilidades.
O ZeroCem propõe ser um participante ativo nestes debates e no enfrentamento destes desafios, por meio de projetos de pesquisa aplicada que busquem incidir sobre a formulação de políticas públicas, de modo a apoiar a construção coletiva destas transições.
Nossas atividades buscam construir redes de conexão e arranjos de governança que reconheçam os sujeitos como o pivô essencial que dá concretude a essas ligações entre o nível local e outras dimensões de articulação política. Portanto, entendemos que promover o engajamento e articulação dos múltiplos sujeitos — individuais, coletivos e institucionais — é um elemento essencial para construção e desenvolvimento da cidadania. O foco nos sujeitos permite revelar uma leitura interseccional que agrega perspectivas de raça, gênero, classe e outros marcadores sociais — auxiliando nos esforços de consolidar nossos espaços e práticas democráticas.
O nosso primeiro projeto busca ser um exemplo ilustrativo da forma de abordagem do ZeroCem ao propor o exame de desafios de transição socioambiental a partir de um elemento muito concreto que compõe a paisagem urbana: as coberturas, telhados e lajes da cidade de São Paulo. Apesar de muitas vezes “invisíveis” para a regulação urbanística e para políticas de sustentabilidade como um todo, as coberturas urbanas congregam um enorme potencial pouco explorado de prestação de serviços socioambientais na forma de geração de energia solar, fomento à agricultura, captação de água, assim como expansão de áreas verdes e de lazer.
A partir do apoio do Consulado-Geral dos Países Baixos, o projeto busca mobilizar inspirações e experiências de sucesso internacionais para debater o contexto específico da cidade de São Paulo, que por si só possui um universo de 314 km² de coberturas - área superior a extensão de muitos municípios brasileiros. Como estratégia de conexão entre debates globais e desafios a nível das comunidades e dos territórios, estabelecemos parcerias com atores locais - como o G10 Favelas e o LelloLab - e apoiadores internacionais, produzindo um compartilhamento entre práticas e saberes culturais, ferramentas e conhecimentos técnicos. A partir de estudos de caso em Paraisópolis e no centro expandido de São Paulo, queremos fomentar a construção coletiva de visões de futuro e novos imaginários, que podem subsidiar estratégias inovadoras de intervenções “verdes” nas coberturas, dando um retorno concreto para a coletividade. Para além disso, os resultados do nosso projeto buscam amparar um esforço maior de disseminação e mobilização da sociedade civil para incidir sobre a formulação de políticas públicas que possam apoiar a transformação destes espaços.
Com base nesta perspectiva, olhamos com otimismo para um novo ciclo que se inicia no Brasil em 2023. O anúncio de um novo pacto social e ecológico que frisa a defesa e fortalecimento da democracia também abre uma frente de reconstrução de políticas públicas que possui como componente essencial os territórios. Nos próximos anos, é urgente avançar no enfrentamento das desigualdades estruturais, e, para isso, o ZeroCem propõe como estratégia central aterrar e disseminar essas iniciativas — em um, dez, cem lugares — articulando redes entre os sujeitos e comunidades que os habitam e produzem, em direção a uma transição socioambiental justa e inclusiva.