O debate sobre políticas de transferência de renda foi reaquecido no Brasil após o auxílio emergencial, adotado em 2020 no contexto da pandemia de covid-19, ter colocado no centro das atenções milhões de pessoas pobres tidas como invisíveis fora dos círculos especializados em políticas sociais.
Uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em abril de 2021 fixou até o exercício fiscal de 2022 o prazo para que o governo federal apresente os rumos que dará à lei federal n. 10.835 de 2004, que criou a renda básica universal e está pendente de regulamentação desde sua sanção. No Congresso Nacional, já circulam alguns projetos de lei nesse sentido, acelerados pela necessidade de transformar o auxílio emergencial em algo permanente. A sociedade civil e os parlamentares têm se debruçado sobre diferentes propostas que contemplam tanto os aspectos de justiça social, quanto os recursos necessários para sua viabilização financeira.
Um caminho possível é a reorganização do Bolsa Família. Criado em 2003, o programa é um benefício com um valor variável, que começa em R$ 89 e cresce a depender da composição e da renda de cada família. Trata-se de uma transferência de renda focalizada e com condicionalidades. Focalizada porque é dirigida a grupos específicos: gestantes, nutrizes, crianças e adolescentes em famílias com renda familiar mensal per capita de R$ 178 no máximo. Condicional porque tem como prerrogativa o pagamento do benefício atrelado a determinadas condições de educação, saúde, renda e atualização cadastral. Esse formato do Bolsa Família é condizente com o objetivo de alívio ou de mitigação da miséria e apresentou resultados importantes desde a sua criação, mas mostra-se insuficiente como estratégia de desenvolvimento econômico e social, acumulando filas de espera e anos de defasagem nos valores dos benefícios.
A construção de uma política robusta de fortalecimento das famílias, que lhes dê condições de se estruturarem e participarem de maneira autônoma da vida socioeconômica do país, passa por conceber uma estratégia de transferência de renda como direito de cidadania e não como compensação por insuficiência momentânea de recursos financeiros.
Esse é o espírito da renda básica universal, que propõe o fim das diferenciações, é permanente, sem condicionalidades e válida para toda a população. Nesse desenho, o monitoramento de serviços sociais aos quais os membros de cada família têm de atender, muitas vezes indisponíveis ou de baixa qualidade em regiões diversas, passam a ser considerados direitos que não implicam a retirada de seu benefício. Desse modo, todo cidadão deixa de ficar ao sabor de ações provisórias paliativas e desenvolve a capacidade de se planejar, algo quase impensável em um modelo como o das atuais políticas.
A construção de uma política robusta de fortalecimento das famílias, que lhes dê condições de se estruturarem e participarem de maneira autônoma da vida socioeconômica do país, passa por conceber uma estratégia de transferência de renda como direito de cidadania
Ao redor do mundo, a renda básica tem inspirado discussões profundas em função de um cenário econômico em que a renda do trabalho se reduz, mas amplia-se a produtividade. A produção cresce e, no entanto, os arranjos trabalhistas se enfraquecem, enfatizando a importância de se construir um sistema de proteção social que vá além do vínculo do trabalho, o que tem especial importância no Brasil, que em sua história limitou a cidadania e o acesso a benefícios aos vínculos corporativos. Há também um efeito multiplicador gerado por esse tipo de programa que é muito relevante para países em desenvolvimento. O auxílio emergencial, por exemplo, foi capaz de influenciar significativamente a relação dívida/PIB ao funcionar como mecanismo estabilizador que impediu uma redução ainda maior da atividade econômica.
Ainda que se reconheçam as limitações para a implementação de um benefício como a renda básica universal neste momento no país, é fundamental que o desenho e a forma de custeio adotados no futuro próximo carreguem princípios que permitam a transição gradual para esse modelo em etapas que atendam prioritariamente os mais necessitados, de forma escalável. É essencial que o benefício garanta segurança econômica, dignidade, previsibilidade, autonomia, liberdade e cidadania. Ele deve ser o mais abrangente possível, ter um cálculo simples e compreensível e dar às pessoas a certeza e a confiança de que poderão contar com aquele recurso ao longo do tempo.
Seria possível, por exemplo, iniciar a oferta da renda básica por um recorte etário para crianças e adolescentes, que são sujeitos de direitos e em desenvolvimento, e depois expandi-la, pouco a pouco, para outras faixas etárias ou de recortes de renda per capita. Do ponto de vista social, é inegável que as crianças e os adolescentes precisam de recursos no hoje e no agora para desenvolverem suas competências socioemocionais e para prosseguirem nos seus estudos, concluindo o ensino médio, última etapa da educação básica e que ainda sofre tanto com a evasão.
O benefício universal da infância e adolescência também carrega o potencial de corrigir distorções: declarantes do Imposto de Renda da Pessoa Física contam hoje com um benefício por seus dependentes superior ao valor que se transfere às mães do Bolsa Família por cada um de seus filhos.
Ao mesmo tempo, a população do país já tem demonstrado uma percepção de que as desigualdades sociais e econômicas devem ser diminuídas. Pesquisa de opinião recente da Oxfam Brasil, realizada pelo Datafolha, intitulada “Nós e as Desigualdades”, mostra que 8 em cada 10 pessoas acreditam que não é possível progresso sem redução de desigualdades. Das 2.079 pessoas de 130 municípios escutadas em dezembro de 2020, 84% aprovam o aumento da tributação no topo da pirâmide e 54% são a favor da elevação dos impostos para todos com o objetivo de financiar as políticas sociais, como educação, saúde e habitação.
Indo na direção desse desejo coletivo, todos os esforços para uma melhoria dos modelos de transferência de renda, rumo a uma renda básica universal, sejam eles fiscais ou políticos, são para desenvolver o Brasil nos próximos anos, tornando-o um país mais justo e digno para seus cidadãos, que têm o direito a uma vida decente.