A moderna concepção de cidadania sugere a ideia de que a extensão gradual e constante de direitos civis, políticos e sociais ao conjunto dos membros de determinada comunidade política nacional pode enfrentar as desigualdades, próprias das sociedades capitalistas. Nesse processo de extensão, a positivação dos direitos da cidadania é importante, mas insuficiente para garantir que todas e todos os exerçam. Especialmente no caso dos direitos sociais, é necessário que o Estado atue ofertando bens e serviços públicos por meio do orçamento público.
Em 5 de outubro de 1988, nós, brasileiras e brasileiros, inscrevemos nosso ideal de cidadania na Constituição Federal. Tratava-se, como deixa registrado o memorável discurso do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Deputado Ulysses Guimarães, de “mudar a nação” restabelecendo os direitos civis e políticos cassados durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), acrescentando novos direitos sociais e estendendo o conjunto dos direitos daí resultante a pessoas que, até aquele momento, encontravam obstáculos legais ou materiais para realizá-los. Afinal, como bem disse o deputado constituinte na ocasião: “é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa”.
Uma visão do orçamento público apenas como instrumento de controle de gastos norteou inúmeras alterações constitucionais e legais, com menor atenção ao seu papel central na garantia de direitos e no enfrentamento às desigualdades
A busca por aquele ideal de cidadania, no entanto, não terminou em 1988. Como as disputas políticas que lhe deram causa não se extinguiram com a promulgação da “Constituição Cidadã”, a mudança da nação pela garantia de direitos a todas e todos continuou um projeto inconcluso e sujeito a redefinições. Já no ano seguinte (e ainda hoje), brada-se: “os direitos não cabem no orçamento”! Desde então, uma visão do orçamento público apenas como instrumento de controle de gastos norteou inúmeras alterações constitucionais e legais, com menor atenção ao seu papel central na garantia de direitos e no enfrentamento às desigualdades.
Já em 1994, seis anos após a promulgação da Constituição, a base financeira estabelecida para o Sistema de Seguridade Social, formada pelas contribuições sociais do Estado, das empresas e dos trabalhadores, era desarticulada com o dispositivo que mais recentemente ficou conhecido como DRU (Desvinculação de Receitas da União). A partir de uma alteração constitucional transitória 1, tornada permanente por meio de sucessivas prorrogações 2, o Estado foi autorizado a desvincular de 20% a 30% do montante arrecadado com as contribuições sociais e utilizá-lo para custear quaisquer despesas consideradas prioritárias ou para compor o resultado primário. Calcula-se que com esse mecanismo tenham sido retirados do Orçamento da Seguridade Social cerca de R$519 bilhões apenas entre os anos de 2005 a 2015.
Após a crise fiscal e cambial de 1999, foram adotados novos parâmetros para a condução da política econômica, sintetizados no tripé macroeconômico: câmbio flexível, metas de inflação e metas fiscais anuais. Para fortalecer o terceiro pé, a Lei de Responsabilidade Fiscal 3 foi aprovada contendo um conjunto de medidas que reestruturam a elaboração e a gestão do orçamento público ao mesmo tempo em que submete a evolução das despesas primárias a regras mais rígidas. Isso solidificou a ideia que ajustes fiscais devem dar ênfase prioritariamente às despesas primárias, categoria que engloba a quase totalidade das políticas sociais.
Em 2016, um novo e importante limitador ao uso dos recursos públicos para a materialização dos direitos da cidadania foi colocado: o “teto de gastos”4. A nova regra fiscal congelou por 20 anos os gastos públicos com o funcionamento da máquina estatal e a oferta de bens e serviços públicos à população, ou seja, os gastos primários. O fato de uma regra fiscal tão rígida como esta ter sido introduzida no texto constitucional – caso único no mundo – indica que os alvos preferenciais da limitação de gastos eram matérias constitucionais, a saber: os gastos mínimos ou “pisos” em saúde e educação. Incapaz de dar previsibilidade aos gastos públicos, como demonstra suas sucessivas alterações 5, o “teto de gastos” tem reduzido severamente os recursos destinados ao financiamento das políticas públicas. Dadas as desigualdades de classe, gênero e raça/etnia que estruturam a nossa sociedade, os mais prejudicados com essa redução são as mulheres e as pessoas pobres, negras, indígenas e LGBTQIA+ Justamente os grupos de brasileiras e brasileiros alcançados pela positivação dos direitos da cidadania em 1988.
Os exemplos aqui trazidos denotam as profundas ligações estabelecidas entre orçamento público, garantia de direitos e enfrentamento às desigualdades. Eles também nos permitem afirmar que a luta por direitos no Brasil é a luta pela base fiscal do Estado. Sem essa base fiscal, os direitos da cidadania são apenas expectativas de direitos. É chegada a hora de repensar o orçamento público também para atender as necessidades urgentes da população mais vulnerável, prejudicada de forma desproporcional pela pandemia da covid-19. Do contrário, corremos o risco de perenizar os prejuízos circunstanciais que se somaram àqueles estruturais e históricos já aqui apontados.
Em vista disso, a Fundação Tide Setubal e a Assecor (Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento), em parceria com outras organizações da sociedade civil, lançam o 1º Prêmio ‘Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades’. O objetivo é reconhecer trabalhos e pesquisas que enfoquem as finanças públicas, não somente a partir de uma perspectiva da sustentabilidade fiscal, mas também de forma comprometida com o desenvolvimento social do país, o combate às desigualdades de raça, gênero e renda e à garantia de direitos para a população brasileira.
O Prêmio está com inscrições abertas até 06 de março e contemplará até oito trabalhos de pesquisadores comprometidos com estas temáticas. Encorajamos a participação de mulheres, pessoas negras, indígenas, PCD (pessoas com deficiência), LGBTQIA+ e imigrantes e esperamos, com isso, contribuir para um debate público mais plural e qualificado sobre o orçamento público. Se, como disse Ulysses Guimarães, “a Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”, entendemos que o orçamento público deve ser o meio desta voz, letra e vontade de a mudança se manifestar.