“Lembrando que nós estamos fazendo a discussão do plano diretor, vamos enviar para a Câmara no final do ano, porque no artigo 4º da lei diz que é obrigatório que em 2021 o Executivo envie para a Câmara a revisão do plano diretor. Portanto é uma obrigação legal, a participação haverá, nós estamos com a vacinação bastante avançada, até o final do ano inclusive vai ser possível a Câmara realizar audiências lá. Então estou muito tranquilo com relação a isso” 1.
No final de julho, o prefeito Ricardo Nunes estava no centro do programa Roda Viva. Sua resposta se referia aos motivos para levar o processo de revisão do plano diretor adiante, mesmo em meio à pandemia. Não se trataria de um ato de vontade ou de uma escolha política da gestão, mas de uma obrigação legal. A legalidade nos vincula. Nunes cita expressamente o artigo da lei do atual plano diretor que determina que o Executivo deve apresentar proposta de revisão ao Legislativo em 2021.
Nunes não inclui a pandemia como obstáculo para revisar o principal instrumento de política urbana da cidade. Pelo contrário. Nem mesmo um evento tão adverso poderia alterar o compromisso com a lei, aparentemente blindada de qualquer interpretação que levasse seu contexto de aplicação em conta, bem como a dificuldade de cumprir outras exigências igualmente previstas em lei, como a gestão democrática da cidade. O texto legal seria implacável, a conduta não poderia ser outra que não se submeter. Posicionamentos em favor do adiamento seriam, portanto, contrários à legalidade.
O secretário de desenvolvimento urbano, Cesar Azevedo, também defendeu a mesma posição. Na 64ª Reunião do CMPU (Conselho Municipal de Política Urbana), afirmou: “O que nós estamos propondo, o que o Executivo propôs, segue totalmente a legislação vigente e ainda estamos cumprindo uma determinação legal que estipula a revisão do plano diretor em 2021 (...)” 2.
O mais importante é entender o que mudou para que a gestão abandonasse posições resolutas em favor da revisão e passasse a defender seu adiamento
Três meses depois, o mesmo secretário viria diante dos mesmos conselheiros e conselheiras comunicar exatamente o contrário. Na 66ª Reunião do CMPU, Azevedo afirmou que não seria viável apresentar a proposta em 2021: “Dada a realidade e o status que encontramos hoje, levando em consideração o calendário apresentado e pactuado aqui neste Conselho, ainda, claro, com a formação do Conselho anterior, mas o calendário apresentado, vimos que se tornou inviável o cumprimento do prazo estabelecido no PDE para entrega de uma eventual proposta de revisão do plano diretor neste ano de 2021. Então um dos itens da pauta, o item 4, que nós estamos discutindo aqui agora, é conseguir pactuar aqui com os conselheiros uma posição desse Conselho para que a gente possa se manifestar quanto uma prorrogação do prazo para revisão do plano diretor” 3. Seria necessário repactuar os prazos da revisão, com sugestão, por parte do governo, de extensão para 2022, com possibilidade de prorrogação por outros 12 meses. O posicionamento surpreendeu. Não apenas por se tratar de um recuo, cedendo à sociedade civil majoritariamente contrária à realização da revisão neste ano. Como a prefeitura lidaria agora com seu próprio argumento em torno da legalidade?
O mais importante é entender o que mudou para que a gestão abandonasse posições resolutas em favor da revisão e passasse a defender seu adiamento. Não se tratou de um simples convencimento orientado pela razoabilidade dos argumentos. A principal razão, inclusive citada por Azevedo na reunião do CMPU, foi uma decisão judicial. A prefeitura contratou, com dispensa de licitação e pelo valor de R$ 3,5 milhões, a FDTE (Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia) para realizar estudos técnicos para embasar a proposta. Estamos diante de uma revisão, o que significa, antes de tudo, elaborar um diagnóstico sobre quais instrumentos do plano foram de fato aplicados, se foram eficazes, que efeitos geraram, como podem ser aprimorados. Para fazer esta avaliação é preciso analisar e produzir uma série de dados que amparem ajustes e mudanças de rota na política urbana.
Em julho, Guilherme Boulos, a Bancada Feminista do PSOL e movimentos de moradia questionaram a contratação na justiça, por meio de uma ação popular. Em agosto, o desembargador Aroldo Viotti concedeu pedido de liminar para suspender o contrato. O argumento girou em torno da excepcionalidade da dispensa de licitação e dos danos à administração pública em razão desta dispensa indevida. A decisão liminar colocou a prefeitura em xeque.
Estudos técnicos seriam necessários para continuar o processo de revisão. Com o contrato suspenso, não seria possível dar este primeiro passo. Mesmo que o Judiciário decidisse em favor de uma eventual abertura de licitação, os processos de escolha pública levam tempo. Caso a prefeitura entendesse que a contratação já não era mais necessária, recorrendo ao seu próprio corpo técnico para dar continuidade aos trabalhos, haveria sinalização de que a despesa de R$ 3,5 milhões aos cofres públicos não teria justificativa. Assim, estaria configurada a caracterização de improbidade administrativa.
O recuo foi, portanto, estratégico. O CMPU decidiu enviar à Câmara uma proposta de alteração por meio de lei, indicando o prazo de 2022. No entanto, não era necessário consultar o Legislativo. O Ministério Público já havia editado recomendação indicando que a pandemia tornava o prazo do artigo 4º pouco razoável, sugerindo, portanto, o adiamento. O MP-SP deixou expresso que nenhum agente público seria responsabilizado por descumprir o prazo legal. A crise em múltiplos níveis trazida pela pandemia era motivo suficiente para calibrar esta expectativa.
Ao saber sobre a proposta de adiamento, Milton Leite, presidente da Câmara, passou o seguinte recado no Colégio de Líderes: “Mas quero colocar aqui que o prefeito pede o encaminhamento do plano diretor para 2022 e pede, se eu não me engano, um prazo de um ano. Nós não vamos votar isso e não vamos autorizar um ano, não. No máximo 180 dias. Eu tenho uma discordância com o prefeito, que pediu um ano, algo razoável, mas nós vamos dar 180 dias só. Que assim encerramos a discussão no ano que vem” 4.
Esta é uma das primeiras vezes – se não a primeira – em que o presidente da Câmara faz frente a uma proposta da atual gestão municipal. É possível pensarmos em dois cenários. No primeiro, há desalinhamento entre Nunes e Leite. A legitimação para a prorrogação foi buscada apenas em meio à sociedade civil representada no CMPU, deixando uma ponta solta com a Câmara. A prefeitura teria dado por pressuposto o apoio de Leite. Esta não é uma hipótese implausível, na medida em que Leite tem aprovado diversos projetos urbanísticos da atual gestão aos atropelos, com votações de madrugada e nos finais de semana, sem maior debate com a sociedade. No segundo cenário, estaríamos diante de uma jogada casada. Nunes anuncia a prorrogação, mas seria impedido pela Câmara, que passa a ser o bad cop. Uma eventual ação de improbidade não é incluída nos cálculos e, neste cenário, a conta não fecha.
Em paralelo, Milton Leite se organiza para votar alterações na Lei de Uso e Ocupação do Solo, mais conhecida como lei de zoneamento, sem discutir a revisão do plano diretor, como deixou claro na reunião do Colégio de Líderes no dia 9 de novembro: “É razoável que sejam 180 dias isso, sem prejuízo de nós votarmos – e aí falo eu – nós votaremos a Lei de Uso no final e no início desse ano ainda, final desse ano e início do outro” 5.
Estamos diante de um xadrez de interesses na política urbana de São Paulo. Nunca foi sobre legalidade. Enquanto Nunes e Leite movimentam suas peças, é a cidade toda que perde.