O debate público sobre plataformização do trabalho tem destacado entregadores e motoristas. Contudo, esse processo afeta uma miríade de trabalhadores nas mais diferentes plataformas. Muitas vezes eles permanecem invisíveis, trabalhando de suas próprias casas, conforme mostra relatório da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre trabalho em domicílio de fevereiro de 2021. Entre as plataformas, há as chamadas plataformas de microtrabalho - também conhecidas como trabalho fantasma e trabalho do clique. Nesses lugares, os trabalhadores executam tarefas de dados de forma fragmentada.
Em pesquisa conduzida por nós no âmbito do projeto Histórias da Inteligência Artificial, da Universidade de Cambridge, dividimos essas plataformas em três tipos: a) aquelas cujos trabalhadores alimentam e treinam dados para algoritmos de reconhecimento facial e outros objetos, além de avaliar publicidade e transcrever áudios, como Amazon Mechanical Turk, Lionbridge e Appen; b) aquelas que fazem atividade de moderação comercial de conteúdo em terceirizadas de grandes plataformas, como Pactera e Cognizant; c) as plataformas de fazendas de clique, que têm tido destaque midiático e acadêmico principalmente no Sudeste Asiático. Mas todos os três tipos apresentam atividades no Brasil a partir de diversas empresas.
Por meio das plataformas de fazendas de clique, como Ganhar no Insta, Dizu, Siga Social e Farmar Social, influenciadores, artistas, políticos, empresas e outros profissionais podem comprar seguidores e curtidas em redes sociais como Instagram, YouTube e TikTok. Dá para comprar 2.000 seguidores por cerca de R$ 170 1. Contudo, o impulsionamento não é automatizado, e as plataformas prometem “seguidores reais”. Mas isso é feito por meio de uma multidão de trabalhadores ganhando menos de um centavo por tarefa realizada. Eles passam o dia clicando, seguindo e comentando em redes sociais. Uma das fazendas de clique justifica que o valor pode parecer pouco, mas que pode ser compensado com grande quantidade de ações que não demandam muito tempo.
Essas plataformas são altamente dependentes dos mecanismos e infraestruturas das redes sociais e de clientes em busca desta palavra mágica e reapropriada pelo Santo Graal dos gurus tecnológicos: engajamento. Essa dependência das fazendas de clique em relação às redes sociais pode fazer delas plataformas parasitárias - considerando a relação, inclusive de governança, entre diferentes áreas do ecossistemas de plataformas naquilo que ficou conhecido como “árvore das plataformas”. Alguns dos artifícios naturalizados pelas fazendas de clique são proibidos pelos termos de uso de plataformas de redes sociais. Com isso, os trabalhadores podem ter suas contas bloqueadas. E, como acontece em outros setores plataformizados, as fazendas de clique não se responsabilizam por isso.
Essas plataformas são altamente dependentes dos mecanismos e infraestruturas das redes sociais e de clientes em busca desta palavra mágica e reapropriada pelo Santo Graal dos gurus tecnológicos: engajamento
Para sobreviver, os trabalhadores são obrigados a atuar com múltiplas contas, muitas delas falsas. Isso é previsto pelas próprias plataformas, que, no cadastro, colocam opções de, no mínimo, duas contas para executar as atividades. Tem gente que trabalha até com 200 contas ao mesmo tempo em vários computadores e celulares. Inclusive há dicas - por parte de trabalhadores e plataformas - de como criar contas. Uma delas é curiosa: “ter nome brasileiro”.
Os trabalhadores também passaram a usar bots para automatizar o seu trabalho, fazendo mais em menos tempo. Resumindo: 1) clientes querem comprar seguidores que não são robôs; 2) há plataformas que terceirizam essa tarefa para trabalhadores pagando menos de um centavo por atividade; 3) os trabalhadores, por sua vez, podem terceirizar ao menos parte dessa tarefa para robôs. Ainda há todo um mercado paralelo de vendas e compras de bots e contas falsas a preços como R$1,50. Inclusive, algumas plataformas criaram seus próprios bots, dessa forma lucrando e reapropriando-se desse mercado paralelo.
Mas quais são algumas das implicações das fazendas de clique para o debate público?
1. Em consonância com o relatório da OIT sobre trabalho em domicílio, é preciso visibilizar as condições de trabalho dos trabalhadores de fazendas de clique e fomentar políticas públicas rumo ao trabalho decente em plataformas digitais, inclusive de forma remota. Muitos desses trabalhadores decidem entrar nas plataformas atraídos por um trabalho relativamente fácil e, muitas vezes, veem-se frustrados tanto pela baixa remuneração quanto por bloqueios e falta de tarefas. A insatisfação com essas plataformas tem crescido a tal ponto que, no mês de março, os trabalhadores declararam greve e articularam-se com youtubers de canais sobre como ganhar renda extra;
2. Debates e propostas sobre regulação e governança devem considerar as especificidades das plataformas. Como regular as fazendas de clique? E quais são as implicações éticas desse mercado? Por exemplo, o impulsionamento em redes sociais é autorizado nas campanhas eleitorais - com as devidas regras - , mas não há nenhuma previsão sobre a atuação de trabalhadores pagos para realizar esse impulsionamento;
3. Pesquisas sobre fazendas de clique na Indonésia e nas Filipinas apontam relações do trabalho nessas plataformas com a circulação da desinformação, revelando um verdadeiro chão de fábrica do ódio. No Brasil, ainda não há nenhuma investigação focada no contexto local;
4. A compreensão das mudanças do mercado publicitário e das práticas de influenciadores digitais passam também pelo papel das fazendas de clique - e outras de microtrabalho. Se, em outras plataformas, os trabalhadores avaliam publicidade, aqui ajudam a sustentar parte do ecossistema de likes sob o qual vivem as redes sociais.
As plataformas de fazendas de clique são a deep web do trabalho plataformizado. Em vez de acharmos que tudo vem de inteligência artificial, automação e bots, precisamos visibilizar o trabalho desses “bots humanos” em plataformas parasitas.