FOTO: PIM (Primeira Infância Melhor)
FOTO: PIM (Primeira Infância Melhor)

Como reinventar a política de primeira infância

André Portela Souza, Gisele Mariuse da Silva, Juliana Camargo, Karine Bernardes Verch e Marina Ribeiro
Com a pandemia, programa de visitação gaúcho teve de rever o atendimento presencial. Para se adaptar, gestores e pesquisadores conduziram uma ‘teoria da mudança’, que foi útil para que ações mantivessem impactos a mais de 50 mil famílias em situação de vulnerabilidade

A pandemia de covid-19 completou um ano em março de 2021 e não para de fazer vítimas. Persiste mundo afora o rastro de estragos em praticamente todas as áreas da vida em sociedade. A primeira infância, em especial, apresenta retrocesso em seus indicadores, aponta o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) num balanço global dos primeiros 12 meses de crise: a pobreza infantil aumentará cerca de 15% nos países em desenvolvimento, afetando 140 milhões de crianças a mais que no ano anterior.

Os problemas que se colocam para governos no dia a dia são complexos. Para resolvê-los com agilidade e eficiência, a gestão pública precisa, muitas vezes, se reinventar. Gestores e gestoras do programa Primeira Infância Melhor, chamado pela sigla PIM, da Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, optaram pela reinvenção de suas práticas para não colocar em risco o atendimento de quase 53 mil famílias em situação de risco e vulnerabilidade em 235 municípios gaúchos — cerca de 8.000 gestantes e 60 mil crianças de 0 a 6 anos.

Política pública de primeira infância pioneira no Brasil, criada em 2003, o PIM serviu de inspiração para a implantação do programa nacional Criança Feliz e de iniciativas estaduais e em outros países da América Latina. Busca estimular o desenvolvimento infantil integral, a parentalidade positiva — por meio do fortalecimento de vínculos e do protagonismo familiar — e a identificação das necessidades específicas de cada beneficiário, articulando uma rede de serviços pronta para atuar conforme as demandas que surgem no cotidiano das famílias.

Política pública de primeira infância pioneira no Brasil, criada em 2003, o PIM serviu de inspiração para a implantação do programa nacional Criança Feliz e de iniciativas estaduais e em outros países da América Latina

As principais intervenções do PIM são visitas semanais domiciliares e atividades em grupo conduzidas por mais de 2.500 visitadores. Em função da pandemia, elas foram bruscamente interrompidas. Mas, com a mobilização de municípios pela não interrupção do programa em 2020, foi necessário fazer adaptações para manter os atendimentos, incorporando práticas remotas, uma vez que a política de primeira infância é estratégica e prioritária para o governo estadual no atual contexto.

As equipes estadual e municipais do PIM começaram a fazer perguntas que ajudaram a delinear a adaptação para essas visitas remotas durante a pandemia: como garantir a sustentabilidade do atendimento quando a principal intervenção do programa é a visitação domiciliar? Quais os recursos humanos, tecnológicos e financeiros para manter essa intervenção? Como garantir o atendimento e a captação de novas famílias? Como o programa pode auxiliar na redução das vulnerabilidades evidenciadas pela pandemia?

As respostas e reflexões contemplaram o bom uso de evidências com raciocínio analítico. O primeiro passo para implementar uma nova estratégia foi construir a teoria da mudança do PIM. Trata-se de uma ferramenta útil para articular o conceito por trás de uma política, as hipóteses sobre os canais através dos quais se espera promover as mudanças para que a política alcance os resultados e impactos esperados. Esse processo começou em junho de 2020, de forma participativa, envolvendo as equipes estadual e municipais do PIM e o FGV-EESP Clear (Centro de Aprendizagem em Avaliação e Resultados para o Brasil e a África Lusófona).

Com o apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, da Rede de Pesquisa Aplicada da FGV e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Clear e a secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul trabalham desde 2017 para verificar e mensurar os impactos gerados pelo programa sobre seus beneficiários (impactos causais, no jargão acadêmico) por meio de uma metodologia experimental em uma avaliação de impacto longitudinal. O objetivo é identificar ao longo de vários anos os efeitos do PIM no desenvolvimento infantil, no acesso das famílias a serviços básicos, na educação e no mercado de trabalho.

A parceria promoveu capacitações e apoios técnicos regulares em monitoramento e avaliação de políticas públicas com as equipes do PIM, que começaram a desenvolver um novo olhar sobre a política pública. Ficaram mais conscientes, principalmente, sobre a importância do uso de evidências e de aliar teoria e prática no cotidiano do programa. Portanto, além dos impactos de curto, médio e longo prazo do PIM, a parceria com o Clear deve identificar melhorias na gestão do programa ao longo de sua trajetória.

Com a pandemia, o FGV-EESP Clear apresentou também um levantamento de evidências nacionais e internacionais de programas de visitação com registro de metodologias remotas com base em princípios de monitoramento e avaliação de políticas públicas. O processo de co-criação de instrumentos de trabalho — como metodologias e ferramentas para mapear e monitorar os atendimentos e as portarias normativas do PIM — foi todo informado em evidências sistematizadas por boas práticas científicas.

Dada a relevância da visita remota e a identificação de que ela é uma nova modalidade de atendimento — a ser mantida —, seu desenho tem base em evidências. Sem limitações de distância e tempo, a cobertura do PIM pode crescer e atingir um público que antes não era atendido: gestantes que trabalham em turno integral, famílias com crianças matriculadas na educação infantil, entre outros casos.

Frente à nova realidade, é necessário adaptar as evidências científicas ao público-alvo e aos recursos do programa. Mas sua nova modalidade não substitui as tradicionais visitas presenciais, única forma de atendimento possível para muitas famílias devido à dificuldade de contato e ao precário acesso à internet.

O atual desafio abre espaço para gestores e gestoras inovarem, reiterando a importância de avaliar de forma rigorosa todas as adaptações de evidências científicas sobre visita remota aplicadas no Brasil e em contextos de vulnerabilidade, a fim de verificar e mensurar seus impactos.

OPIM planeja seguir usando evidências ao longo de todo seu novo ciclo. O próximo passo é elaborar um plano de monitoramento e avaliação da visita remota. A consolidação do programa reflete a atuação de gestores e gestoras comprometidos com a primeira infância e com respostas que ajudam a reinventar as políticas públicas para a construção de cenários mais favoráveis, mesmo em meio a crises.

André Portela Souza é diretor do FGV-EESP Clear, professor da FGV-EESP (Escola de Economia de São Paulo) e coordenador do C-Micro-FGV (Centro de Microeconomia Aplicada).

Gisele Mariuse da Silva é coordenadora estadual do programa PIM (Primeira Infância Melhor).

Juliana Camargo é pesquisadora associada do FGV-EESP Clear, do C-Micro-FGV (Centro de Microeconomia Aplicada) e professora da Escola de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas).

Karine Bernardes Verch é coordenadora de pesquisa do programa PIM (Primeira Infância Melhor).

Marina Ribeiro é assistente de pesquisa do FGV-EESP Clear.

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