
FOTO: ROQUE DE SÁ/AGÊNCIA SENADO
Avaliação de políticas e programas governamentais, longe de ser neutra e objetiva, é resultado de uma atividade política de discussão orientada por valores e visões de diferentes agentes
Políticas públicas constituem a base constitutiva e legitimadora do Estado contemporâneo. Procuram atender demandas públicas e buscar soluções de problemas de ação coletiva de modo racional, consensual ou deliberativo, segundo princípios e valores humanísticos reconhecidos pela sociedade em seu contrato social. Esse contrato pode se assentar em valores societais mais amplos ou mais restritos, mais solidários ou mais individualistas. Coesão social, equidade, dignidade humana, justiça, cooperação são alguns desses valores “contratados” diferentemente em cada sociedade, inspirados, em larga medida, no pacto civilizatório explicitado na já septuagenária e sempre atual Declaração Universal dos Direitos Humanos . A amplitude com que cada sociedade incorpora esses valores universais depende de um longo processo político e institucional, que vai moldando a natureza do Estado de bem-estar e seu conjunto de políticas públicas, como foi o caso, entre tantos países hoje desenvolvidos, como Alemanha, Suécia e França, desde primeiras décadas do século 20 e, ao final do século, depois da queda das ditaduras de Franco e Salazar, de Espanha e Portugal.
O Brasil entrou ainda mais tardiamente nessa trilha civilizatória, com a redemocratização nos anos 1980 e promulgação de uma Constituição inspirada na Declaração Universal e em tratados internacionais progressistas . Os primeiros artigos da Carta de 1988, referentes aos princípios fundamentais (título 1 da Constituição) e dos direitos e garantias fundamentais (título 2), deixam claro o compromisso do Estado brasileiro com a promoção da cidadania e dignidade humana (artigo 1º), com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza e menos desigual, sem preconceitos de qualquer natureza e está destinada a promover o bem de todos (artigo 3º). Compromissos com a prevalência dos direitos humanos, cooperação, moderação, solução pacífica nas relações internacionais certamente também se aplicam no contexto interno (artigo 4º). Para não se estender muito, vale ainda registrar os direitos políticos, sociais, do trabalho, saúde integral e educação básica, assegurados nos artigos 5º, 6º, 7º, 196 e 205 .
Ao constitucionalizar os direitos políticos e sociais sem quaisquer ressalvas, criando oportunidades para propostas de emendas constitucionais e leis que ampliaram escopo e cobertura de políticas públicas ao longo das duas décadas seguintes, a sociedade brasileira procurava seguir a experiência histórica dos países centrais como França, Alemanha, Reino Unido e Suécia, buscando os recursos necessários ao atendimento das aspirações e demandas coletivas de políticas públicas. Nesses países, o contrato político-social prevaleceu sobre as restrições e as condicionantes econômicas, alargando-as para garantir financiamento de políticas públicas mais abrangentes . Essas sociedades fizeram com que as “demandas coletivas coubessem no orçamento”, garantindo recursos e aperfeiçoando as modalidades de prestação de uma extensa gama de serviços públicos prestados à população, como se vê nesses mais de 13 meses de pandemia.
Em contextos democráticos, avaliações de políticas públicas não podem estar assentadas em valores e princípios particulares que técnicos, tecnocratas, dirigentes ou organizações postulam, mas sim naqueles que sustentam normativamente o desenho da ação pública e sua gestão
Como defendem juristas progressistas, ter colocado a dignidade humana como direito fundamental responsabiliza o Estado brasileiro a não apenas se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade das pessoas, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial por meio de políticas públicas . Há na Constituição, pois, uma clara adesão ao princípio republicano de que “todos temos uma responsabilidade moral com a coletividade e com os demais, independente das pré-condições de nascimento, suas características e potenciais” , para o qual o Estado deve se comprometer com a promoção de bem-estar, equidade, justiça social, liberdade e proteção à vida. Nesse sentido, a Constituição brasileira está muito mais próxima da portuguesa (de 1976) que as de outros países de referência recorrente em estudos comparados de políticas públicas e economia como Coreia do Sul ou África do Sul. Na Constituição da Coreia, por exemplo, não há, nos 30 artigos relativos a direitos e deveres do cidadão menção ao direito à saúde pública (ou como dever do Estado) . No caso da África do Sul, o capítulo constitucional “Bill of Rights” prevê direito à saúde, alimento, água e assistência social, mas com menção explícita à disponibilidade de recursos do Estado .
Vale alertar, contudo, que esse contexto favorável e progressista ao agendamento e desenho de políticas públicas no Brasil pode vir a mudar com a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional 188/2019. Nessa PEC propõe-se incluir um adendo ao artigo 6º da Constituição Federal, condicionando o cumprimento dos direitos sociais ao equilíbrio fiscal intergeracional, constitucionalizando a norma prática subjacente ao teto federal de gastos e às políticas de austeridade fiscal dos últimos cinco anos . Na eventual incorporação desse “detalhe”, a argumentação da “reserva do possível” liquidará, de fato, a primazia de direito que a “Teoria do Mínimo Existencial” ainda tem na ponderação do cumprimento dos compromissos sociais frente às contingências de disponibilidade de caixa. Na realidade, a reserva do que está disponível no caixa do governo já é aplicada mais como uma regra do que uma exceção, restringindo a potencialização de direitos para sobrevivência e dignidade humana em favor de políticas menos inclusivas. É o que se vê cotidianamente na elaboração do orçamento federal mesmo nesse contexto gravoso de aumento de mortes e de pobreza na pandemia ou, já há muitas décadas, da precedência do pagamento de juros da dívida interna sobre outras despesas públicas.
Essas considerações sobre valores e políticas públicas são importantes para chamar a atenção para a comunidade brasileira de avaliação para as dimensões valorativas subjacentes ao processo avaliativo. É fato que parte expressiva de pesquisadores e avaliadores no Brasil tem uma visão idílica, ingênua e positivista do fazer avaliativo (e pré-khuniana da produção do conhecimento científico). Contudo, a Avaliação de políticas e programas, longe de ser uma atividade neutra e objetiva, é resultado de uma atividade política de discussão orientada por valores de diferentes agentes, tal como também é a proposição e formulação das políticas e programas . Avaliação não é uma investigação neutra com respeito aos valores de quem a realiza ou a demanda, seja ele o formulador comprometido com a criação da política, o gestor interessado em operar o programa para atender a demanda motivadora que o originou ou um pesquisador externo ou instituição contratada para analisar a ação pública. Para além de diferenças de perguntas avaliativas e métodos empregados, avaliações chegam a resultados diferentes sobre políticas e programas pelos valores e princípios de mérito do qual partem.
Desta forma, se políticas públicas são desenhadas segundo princípios e valores constitucionais e normativos, a avaliação das mesmas não pode ignorá-los. E, no entanto, há diversas avaliações de políticas setoriais no país em que princípios aplicáveis de universalidade da cobertura, integralidade do atendimento, equidade da oferta, sustentabilidade ambiental não são considerados. Considerações sobre eficiência do gasto público estariam se sobrepondo sobre outras dimensões nas análises de políticas públicas, relegando a um segundo plano os valores como equidade de acesso, efetividade e coesão social .
Se a alusão à Constituição não basta para sensibilizar corações, mentes e práticas avaliativas, é oportuno argumentar valendo-se da posição de autoridade de Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998 por suas contribuições aos estudos de bem-estar social. Em seu pequeno mas impactante livro “Sobre ética e economia”, Sen advoga que a sociedade tem uma obrigação moral para que todos possam ter condições e oportunidades de desenvolver seus potenciais e habilidades . Nesse sentido, a ética civilizatória para garantir um mínimo de bem-estar ou outra dimensão da utilidade se impõe sobre princípios de eficiência econômica na gestão do Estado e das políticas públicas. Afinal, como o autor pontua, o “Ótimo de Pareto”, isto é, a eficiência econômica pode ser alcançada havendo algumas pessoas na miséria extrema e outras nadando em luxo, desde que os miseráveis não possam melhorar suas condições sem reduzir o luxo dos ricos.
Em contextos democráticos, avaliações de políticas públicas não podem estar assentadas em valores e princípios particulares que técnicos, tecnocratas, dirigentes ou organizações postulam, mas sim naqueles que sustentam normativamente o desenho da ação pública e sua gestão. Cabe ao decisor político, e não ao avaliador pretensamente técnico e neutro, fazer as escolhas quanto ao curso da política ou programa público. O decisor não pode ser refém de uma perspectiva particular de avaliação, de preferências de tradições de pesquisa ou convicções enraizadas por segmentos da burocracia, da mídia ou ainda de frações da sociedade. Decisões públicas precisam se respaldar não só em um conjunto plural e robusto de evidências, mas também – e sobretudo – em informações produzidas à luz dos valores imanentes que orientam o desenho e gestão das políticas públicas, tal como inscritas na Constituição e outros documentos normativos.
Paulo de Martino Jannuzzi é professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas/IBGE, em estágio pós-doutoral na Ebape/FGV e professor da Faculdade Cesgranrio.
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