A lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada em 2010, é muito atual e virtuosa. Ela contém instrumentos importantes para permitir o avanço necessário ao país no enfrentamento dos principais problemas ambientais, sociais e econômicos decorrentes do manejo inadequado dos resíduos sólidos. Porém, com o passar do tempo, sua estratégia se mostrou ineficaz durante seus 10 anos de existência. A lei impôs aos municípios um prazo de quatro anos para encerramento dos lixões e abertura ou adesão a aterros sanitários, mas não cuidou do essencial: a recuperação de resíduos e materiais valorizáveis, muitos oriundos de recursos não renováveis. A estratégia adotada para os aterros se mostrou inócua, dada a ausência dos governos estaduais e federal no suporte aos elevados investimentos necessários para implantação dessas unidades. Onde ocorreu evolução, o resultado foi a imposição aos municípios de custeio elevado para suportar o transporte e a disposição final de resíduos em aterros, em grande parte em empreendimentos privados.
O quadro geral é de paralisia, tanto em estados com políticas mais avançadas como naqueles com políticas mais frágeis. Em uns, os municípios são reféns dos custos elevados – em breve insustentáveis – abastecendo negócios privados; em outros, são reféns dos persistentes lixões e sofrem pressão contínua de órgãos de controle para que avancem como os anteriores, numa direção que já se mostrou infrutífera. As perspectivas não são boas, pois 80% dos municípios brasileiros (IBGE, 2020) – que possuem média abaixo de 30 mil habitantes – com cerca de 20 mil habitantes nas sedes urbanas, não têm escala suficiente para resolverem sozinhos seus problemas com os resíduos.
Na próxima gestão, outro rumo é possível
Os planos de governo e vereança das candidaturas em 2020 podem apresentar soluções que vêm sendo elaboradas e implementadas em algumas regiões brasileiras 1, apoiadas em iniciativas locais e regionais. Essas soluções focam no que tem que ser feito: intensa recuperação de resíduos, usando-os para ampliação da geração de trabalho e renda. Implicam, então, em não colocar os resíduos em aterros e evitar o seu transporte por longas distâncias. Os aspectos principais dessa política pública para gestão dos resíduos das cidades são:
- retenção dos resíduos nas cidades, após coleta segregada de cada tipo – não há possibilidade de avanço se a forma de coleta não for alterada;
- implantação de uma central municipal de resíduos como novo destino para os resíduos, onde eles serão recuperados com soluções simples e eficazes já experimentadas em várias cidades 2;
- priorização do manejo dos resíduos orgânicos e resíduos verdes pela sua predominância e para redução da geração de gases em aterro que são nocivos ao clima 3 ;
- implantação da compostagem em nível domiciliar, em escolas e outros estabelecimentos, como hortas urbanas, para ampliar a segurança alimentar, com soluções de maior porte em nível municipal;
- implantação de solução regional para os resíduos de embalagens (secos) para atingir escala necessária e reduzir o investimento;
- implantação de solução para processamento dos resíduos de construção (para consumo em obras públicas) e resíduos verdes (para consumo como biomassa) por meio de equipamentos móveis utilizados em rodízio por cidades vizinhas;
- envolvimento de pequenos negócios já existentes na gestão, inserindo-os em processo de economia circular com uso dos resíduos recuperados – estabelecimentos agrícolas, comércio de sucatas e ferro velho, associações de catadores e recicladores locais, estabelecimentos que utilizem madeira como biomassa para energia (cerâmicas e indústrias em geral);
- espaço para a participação cidadã – as pessoas querem participar da construção de um novo futuro, mas não encontram canais para exercer a sua responsabilidade pessoal com a cidade; para isso, as cidades podem incentivar a compostagem individual, a compostagem coletiva em condomínios e praças, as hortas comunitárias em cada bairro e a entrega responsável de cada resíduo nas coletas seletivas ou nas novas instalações introduzidas na cidade.
É necessário buscar a escala adequada
Tantos anos de insucesso estão mostrando que a ampla maioria dos municípios não consegue avançar de forma isolada. Apenas as metrópoles e as cidades médias têm escala e capacidade gerencial para um avanço isolado. A maioria das cidades brasileiras, sendo de menor porte (os 80% abaixo de 30 mil habitantes totais) tem a gestão técnica fragilizada com equipes diminutas e vários resíduos ocorrem em quantidade insuficiente para a introdução de processos de recuperação.
Há um espaço muito grande para avanços locais e regionais, se o rumo correto for adotado com ousadia nos planos de governo e nas propostas de vereança apresentadas nestas eleições
Os planos de governo deveriam incluir o compromisso de iniciar o processo de organização do Consórcio Público Intermunicipal, expressão da solidariedade regional para gestão dos resíduos na escala adequada. Ele pode qualificar e modernizar os processos e estabilizar a gestão em cada município, para que resíduos não estejam em lixões e aterros, mas, sim, gerando trabalho, renda e reforço da economia local e regional. O custo administrativo de manter o consórcio e a estabilidade da gestão dos resíduos com estas soluções têm ficado em torno de R$ 0,50 4 ao mês por habitante urbano.
Um Consórcio Público Intermunicipal pode funcionar como uma autarquia regional, que, pela lei, é parte da administração de cada município associado e, ao mesmo tempo, é de todos. O consórcio mantém a equipe técnica estável, atendendo a todos, e com isso mantém a estabilidade na gestão dos resíduos, colocando-os no rumo de uma solução eficaz, evoluindo ano após ano, conforme uma programação estabelecida pelos participantes.
Investimentos reduzidos permitem avanço local
O planejamento e a implantação dessas soluções têm mostrado que os investimentos necessários para elas são muito menores que os demandados por aterros onde se perdem os materiais. São em torno de R$ 110 por habitante urbano 5 atendido e no total correspondem a 1% do orçamento municipal (receitas realizadas) durante quatro anos consecutivos. As áreas necessárias para as instalações em cada município ficam entre 7,5 hectares e 20 hectares, dependendo do porte da cidade.
Os recursos para os investimentos precisam ser geridos pelo consórcio público, a partir de um fundo regional de financiamento da modernização da gestão dos resíduos, com controle social e dos prefeitos municipais, em conjunto. No Ceará, os fundos regionais estão sendo compostos pelo repasse mensal de recursos do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) socioambiental, do estado.
Enfrentamento das desigualdades contribui para solução
Nossas cidades são muito desiguais. Ao mesmo tempo que elas não abrem espaços para a participação de associações, cooperativas e pequenos estabelecimentos locais no manejo dos resíduos, os grandes geradores de lixo não são responsabilizados nem cobrados pelos resíduos que geram, logo, os seus custos privados são socializados.
Os grandes geradores em cidades de pequeno porte podem estar gerando em torno de 20% 6 do custo distribuído a toda a sociedade. Já nas cidades de médio porte esse número pode chegar próximo aos 40% 7 . Isso é ilegal, segundo o artigo 27 da Política Nacional de Resíduos Sólidos, e precisa ser corrigido. A correção não implica custo elevado para cada um desses estabelecimentos de grandes geradores, mas é um alívio considerável na conta pública da limpeza urbana.
Os serviços de manejo e destinação de resíduos já são prestados e, havendo a regularização dessa situação por meio da cobrança de preços públicos municipais ou regionais de estabelecimentos privados de maior porte, os recursos obtidos poderão cobrir as necessidades de investimento e os futuros custos operacionais para a qualificação da gestão dos resíduos e a geração de trabalho e renda tão necessários neste período de crise.
Os avanços para cidades mais justas e sustentáveis nesse tema podem independer de outras esferas de governo – além da municipal –, ou reduzir a dependência de recursos externos, desde que sejam adotados objetivos ousados e consistentes nos planos de governo, rumo a arranjos e compromissos regionais ancorados na solidariedade entre cidades vizinhas por meio de um consórcio público.
Síntese para um plano de governo
Há um espaço muito grande para avanços locais e regionais, se o rumo correto for adotado com ousadia nos planos de governo e nas propostas de vereança apresentadas nestas eleições:
- programar instalações para reter os resíduos na cidade;
- apontar o envolvimento e fortalecimento de associações, cooperativas e pequenos negócios manejando resíduos coletados seletivamente;
- prever geração de postos de trabalho e renda e maior formalização de atividades locais;
- vincular a qualificação da gestão de resíduos aos esforços por inclusão social e econômica e redução de desigualdades e de privilégios, inclusive para viabilizar os investimentos necessários;
- apontar processos de participação cidadã nos domicílios, condomínios e espaços públicos ou ociosos nos bairros;
- colocar a perspectiva de construir uma solidariedade regional com os municípios vizinhos, por meio de um consórcio público que permita conquistar escala operacional, solução para todos os resíduos de responsabilidade pública e estabilidade de gestão para os municípios participantes.