É comum ouvirmos que os alunos têm que migrar de consumidores de informação para produtores de conhecimento. No entanto, essas recomendações gerais esquecem que isso não acontece de um momento para outro: há um processo de aquisição e desenvolvimento em jogo para cada estudante.
Antes de alcançar essa meta almejada, é preciso criar condições para que os alunos desenvolvam a capacidade de pensar criticamente sobre passado, presente e futuro. Para isso, é preciso aprender a estudar, a trabalhar com textos escritos de maneira a construir conhecimentos e resolver problemas. A escola pode e deve ter protagonismo nesse sentido, ainda mais numa sociedade com tamanha diversidade individual e social, que demanda a inclusão de milhares de alunos nesse outro patamar. Mas isso depende de um trabalho intencional, flexível e planejado, que gradualmente pode dar ferramentas para que as crianças transitem livremente pelas práticas próprias do universo do conhecimento.
Também sabemos que a educação, sozinha, não chega a superar a diversidade e as desigualdades instaladas na sociedade. Mas isso não significa que a escola seja totalmente ineficaz. Para as crianças, a escolaridade significa uma oportunidade para aprender conteúdos novos, aprender junto com os colegas e, no âmbito particular da linguagem (domínio estrutural do desenvolvimento), a escola apresenta oportunidades para desenvolver o vocabulário, aprender novos estilos de discurso e aumentar os conhecimentos.
Para além de pensar em como potencializar o ensino a distância, a situação atual pode ser um bom estímulo para analisarmos a educação dentro da escola, inclusive incorporando as muitas aprendizagens recentes dos professores, com um uso mais construtivo e menos transmissivo da tecnologia
Ainda que os resultados alcançados nas estatísticas brasileiras estejam aquém do esperado, neste momento de distanciamento social por causa da pandemia, a importância da atividade escolar se tornou evidente. Por quê? Bem, porque, como Philippe Meirieu (2008)1 sustenta, o ensino a distância pela internet, que ganhou intensidade em função do distanciamento social que se impôs com covid-19, aprofunda ainda mais as desigualdades. A questão do fosso digital não consiste apenas em ter ou não ter um computador. O acesso à internet requer treinamento e conhecimentos prévios, que, se não estão disponíveis, aumentam as desigualdades entre os estudantes. Se você deseja procurar por um autor, um tópico ou informação, é evidente que precisa saber, com antecedência, algo sobre o que busca. Sem conhecimentos mínimos, a pesquisa não pode se realizar.
Esse exemplo é básico, mas ocorre o mesmo com muitas outras dimensões, às vezes invisíveis, do processo educacional. Por exemplo, as crianças pequenas aprendem colaborando, por isso é difícil aprender sozinhas — pois não se cria espírito de grupo, nem se desenvolve a noção de pertencimento ou de compartilhar o comum. Também é difícil para elas aprender, sozinhas, procedimentos como revisar ou corrigir o que não foi bem feito. Esse é um aprendizado que se dá tipicamente em situação de interação, em que no processo de ensino e aprendizagem vai se dando o ajuste com ajuda de alguém.
No âmbito digital, essas condições estão ausentes: por quê? Bem, porque, como disse Lévy (1999)2 , na situação virtual se dá o “efeito Moebius” (em referência à fita de Moebius, que é usada como metáfora da passagem do interior ao exterior e vice-versa). Na educação se dá esse efeito quando o ensino coletivo e público se transforma em individual e familiar, e a educação se torna um conjunto de “tarefas a resolver”. O social se transforma em trabalho solitário, sem interlocução para interpretar o texto. Essas condições aumentam as desigualdades.
A desigualdade foi objeto de estudo já na década de 1960. Vários trabalhos relacionaram classe social, condição econômica e educação, tanto no campo da sociologia como da educação e psicologia. Autores como Basil Bernstein, na Inglaterra, Pierre Bourdieu, na França, Paulo Freire, no Brasil e Henry Giroux, no Canadá, para citar apenas alguns, denunciaram que a escola não compensava as condições iniciais da desigualdade social e cultural dos estudantes, mas as reproduzia. Consequentemente, ela não atingia seu objetivo de educação igualitária para toda a população. A situação não era exclusiva de um país, tampouco podia ser atribuída à capacidade dos alunos, uma vez que a maioria tinha todas as possibilidades para aprender.
Novamente, em meados da década de 1990, houve outro alerta “déjà vu” sobre desigualdades. Um estudo realizado nos EUA por Hart & Risley (1995)3 com crianças de 3 a 4 anos demonstrou que a quantidade de informação verbal em contextos familiares melhorava o desenvolvimento da linguagem infantil. Mais especificamente, o estudo relacionava a condição social das famílias com os contextos de interação. Os autores contaram o número de palavras que os pais dirigiam aos filhos e constataram que a classe trabalhadora ouvia 616 palavras por hora, enquanto a classe profissional ouvia 2.153 — ou seja, a diferença era de 1.251 palavras a menos por hora. Em quatro anos, argumentaram Hart & Risley, haveria uma diferença de quase 30 milhões de palavras. Mais do que uma lacuna, havia um abismo.
Algum tempo depois, Philippe Meirieu (2008), estudioso francês, discutiu especificamente a relação escola-desigualdade e sustentou que a escola havia democratizado o acesso, permitindo que todos entrassem, mas não havia democratizado o sucesso de saída.
Haverá perdas inevitáveis com a pandemia. Mas, para além de pensar em como potencializar o ensino a distância, a situação atual pode ser um bom estímulo para analisarmos a educação dentro da escola, inclusive incorporando as muitas aprendizagens recentes dos professores, com um uso mais construtivo e menos transmissivo da tecnologia. Mais do que despejar sobre as crianças e professores o currículo perdido ou focarmos em avaliações diagnósticas, depois da covid-19 será necessário nos concentrarmos em entender o como, o quê, e o quando do trabalho pedagógico para realmente dar as ferramentas de aprendizagem para todos os alunos. Se nós, educadores e pesquisadores, não o fizermos, as empresas farão isso. A situação atual de pandemia requer maior implicação de todos os agentes sociais que participam do projeto educativo, especialmente daqueles mais diretamente envolvidos: famílias, educadores e educandos.