“Todos nós seremos afetados pelas mudanças climáticas.” Utilizada em algumas campanhas de sensibilização para o tema, a frase omite que, dentro de “nós”, alguns sofrerão muito mais os impactos desse processo do que outros. A degradação ambiental e os impactos causados pelas mudanças climáticas não são democráticos. Eles têm cor, raça, gênero e classe social certa.
Em debate promovido pelo Instituto Pólis no dia 26 de novembro, Sarah Marques, uma das fundadoras do coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, que participa do Observatório do Clima, desabafou: “A gente não escolhe a luta, a gente já nasce na luta”. Ou a gente luta [contra as mudanças climáticas] ou a gente morre, e os nossos morrem também”. As enchentes e deslizamentos são cotidianos para centenas de milhares de brasileiros que, por falta de opção e de políticas habitacionais adequadas, vivem em áreas sujeitas a esses riscos, os quais tendem a se intensificar diante dos efeitos do aquecimento global.
Há décadas vem sendo apontada a indissociabilidade entre o impacto causado por fenômenos climáticos, os resultados dos processos de degradação ambiental e fatores raciais, sociais e econômicos. Já no início dos anos 1980, o movimento negro dos Estados Unidosdenunciava, por exemplo, que 3 em cada 4 aterros de resíduos tóxicos localizavam-se em comunidades onde pessoas negras e abaixo da linha da pobreza contabilizavam ao menos 60% da população. Em 1987, um estudo comprovou que a composição racial de uma comunidade era fator determinante para a definição da localização de aterros de lixo tóxico.
Em 1984, a fábrica de agrotóxicos da empresa estadunidense Union Carbide vazou 27 toneladas do gás isocianato de metila em um bairro pobre da cidade de Bophal, na Índia. Considerado um dos maiores crimes industriais do mundo, o vazamento matou imediatamente cerca de 2.200 pessoas e causou danos para aproximadamente 600 mil. Mais de 30 anos depois, diversas vítimas e famílias seguem sem a devida assistência, e futuras gerações ainda estarão comprometidas com a contaminação.
No desastre socioambiental causado pelo rompimento da barragem que pertencia a Samarco, Vale e BHP na cidade de Mariana (MG), mais de 80% da população diretamente afetada era negra.
Há décadas vem sendo apontada a indissociabilidade entre o impacto causado por fenômenos climáticos, os resultados dos processos de degradação ambiental e fatores raciais, sociais e econômicos
Mesmo quando não ocorrem eventos climáticos extremos ou crimes ambientais, a população negra e pobre do país encontra-se permanentemente sob maior exposição a riscos ambientais. Desde o início da década de 2000, estudos têm demonstrado que, na cidade de São Paulo, cerca de 28% da população residente em regiões pobres vivem sob risco ambiental de enchentes ou deslizamentos. Em regiões de classe alta, apenas 9,9% da população estão expostas ao mesmo risco.
Como o integrante da organização Amigos da Terra e do MTST (Movimento de Trabalhadores Sem Teto Fernando Costa pontuou durante o debate do Instituto Pólis, existem no Brasil “APPs [Áreas de Preservação Permanente] para pobres e APPs para ricos”, cabendo aos primeiros as áreas com maiores riscos e, aos últimos, ilhas para construção de suas mansões. Nessa repartição do meio ambiente brasileiro, o esgoto não tratado, a água não potável, o agrotóxico, os solos pobres e as condições insalubres de moradia e com risco de deslizamento cabem à classe baixa e majoritariamente negra. À classe alta e majoritariamente branca cabem áreas preservadas com ar limpo, água tratada, alimentos orgânicos e casas arejadas com iluminação natural e regulação térmica.
A formulação e a implementação de políticas públicas ambientais e de enfrentamento às mudanças climáticas devem, portanto, partir necessariamente de um paradigma de justiça climática e ambiental atrelada à efetivação de direitos humanos. A satisfação plena do direito ao meio ambiente equilibrado e saudável apenas será realidade quando houver um arranjo de políticas que também busquem promover o acesso, por exemplo, à moradia adequada, à sustentabilidade econômica, à segurança alimentar. “[Em ação] no Supremo Tribunal Federal, levamos a correlação entre direitos humanos e clima. A fome está em ascensão, e isso é impulsionado pelas mudanças climáticas e eventos climáticos extremos”, destacou no debate de novembro Júlia Neiva, da Conectas Direitos Humanos.
O rumo apontado por especialistas é, então, a transversalidade da agenda climática junto a políticas sociais e urbanas. Uma análise do coletivo Clima de Eleições dos programas de governo das candidaturas ao Executivo municipal nas capitais brasileiras demonstrou que essa não era a abordagem dos candidatos. Apesar de haver um aumento do número de candidaturas mencionando a agenda climática em relação a anos anteriores, “muitos [desses programas de governo] desconsideravam direitos da população, inclusive apontado para remoções de famílias”, sem qualquer compromisso com a justiça climática e ambiental, de acordo com João Henrique Cerqueira, representante do coletivo presente no debate do Instituto Pólis.
Passada a eleição municipal, está claro o desafio: exigir das gestões municipais eleitas a transversalização de políticas climáticas sob o paradigma da justiça e dos direitos humanos, de forma a enfrentar as desigualdades sociais, econômicas e raciais que se encontram na base do processo de degradação ambiental e das mudanças climáticas. Por mais que tentem nos convencer de que, quando se trata de mudanças climáticas e problemas ambientais, “estamos todos no mesmo barco”, isso é uma mentira. Podemos estar no mesmo mar, mas alguns dispõem de lanchas e transatlânticos, enquanto outros nadam sem sequer coletes salva-vidas.