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PONTO DE VISTA

Líderes contra a democracia

Mônica Sodré 25 de Novembro de 2020 (Atualizado 28/12/2023 às 17h08)

FOTO:MARRI NOGUEIRA/AGÊNCIA SENADO

Tentativas de desqualificar as instituições têm sido uma constante de governantes neopopulistas ao redor do mundo e fazem parte de um protocolo de atuação dos que encaram a política como um jogo de soma zero

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Eleições. Esse é o assunto das últimas semanas. A disputa acirrada entre Donald Trump e Joe Biden nos EUA dominou os noticiários por dias, sucedidos pela cobertura do maior pleito municipal da história do Brasil, com mais de meio milhão de candidatos concorrendo a quase 70 mil vagas de vereadores, prefeitos e vice-prefeitos por todo o país. Tanto lá como aqui, o mote do “vote” (em inglês e em português) se fez presente diante do desafio de levar às urnas, em meio a uma pandemia sem precedentes , uma população já descrente na política. No Brasil, 1 a cada 4 eleitores absteve-se do direito ao voto, de acordo com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Brasil e Estados Unidos têm inúmeras diferenças em seus sistemas eleitorais e federativos, mas guardam uma semelhança: são democracias que têm sido, assim como boa parte das democracias liberais atuais, colocadas à prova. Os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro vêm questionando sistematicamente processos e resultados eleitorais. Acima da linha do Equador, a equipe de Trump abriu processo na Justiça de vários estados alegando fraudes eleitorais, a despeito da ausência de provas e das declarações de lisura de organizações externas que acompanharam as votações, como a OEA (Organização dos Estados Americanos) e a Organização para Segurança e Cooperação na Europa. Mais de 15 dias após a contagem dos votos, o atual presidente americano ainda não reconheceu publicamente a vitória de seu adversário, apesar de ter autorizado a transição para o governo de Biden.

Do lado de cá, o processo de contestação dos resultados eleitorais segue caminhos menos óbvios. Começou ainda em março deste ano, com declarações do presidente Bolsonaro de que a eleição de 2018 – da qual saiu vitorioso – havia sido fraudada. Nos últimos dias, após certa lentidão do TSE na apuração dos resultados do primeiro turno das eleições municipais, o presidente afirmou que o “país precisa de um sistema de apurações que não deixe dúvidas ”, provocando nova onda de desconfiança e desinformação.

Embora o princípio da maioria seja regra das democracias nos contextos eleitorais, é nas democracias – e somente nelas – que as minorias têm preservados e garantidos seus direitos de todas as ordens, tais como os sociais, os civis e os políticos

A declaração tempestiva precisa, claro, ser lida a partir de outras duas variáveis: o desempenho desfavorável e insatisfatório dos apadrinhados pelo presidente em diversas regiões do Brasil, uma vez que 9 dos 13 candidatos a prefeitos por ele apoiados não conseguiram se eleger, e o fracasso do PSL – seu ex-partido, com o qual ensaia um reatar. A legenda foi a segunda maior beneficiária do fundo eleitoral, mas, mesmo tendo acesso a quase R$ 200 milhões, não conseguiu levar seus candidatos ao segundo turno nas 14 capitais em que disputou.

De outro lado, com a vitória do democrata Joe Biden, observamos uma reação dos ventos do Norte, que podem indicar cansaço de parte significativa da população em relação à raiva e ao extremismo compartilhados por políticos como Trump e Bolsonaro. Assim, há um caminho potencialmente menos tranquilo ou mais custoso para a reeleição do presidente brasileiro em 2022. A contestação “ex-ante serviria, portanto, para criar um clima de “eu avisei”, caso haja um revés nas urnas na próxima eleição. De toda forma, o silêncio de Bolsonaro sobre a eleição de Biden denota, assim como no caso de Trump, um profundo desprezo pelas regras do jogo democrático.

A tentativa de desqualificar as instituições não é novidade: tem sido uma constante de líderes neopopulistas ao redor do mundo e faz parte de um protocolo de atuação dos que encaram a política como um jogo de soma zero. Ao longo do tempo, nos acostumamos com a afirmação de que a democracia nada mais é do que o governo da maioria, mas damos pouca atenção a um de seus aspectos mais essenciais: embora o princípio da maioria seja regra das democracias nos contextos eleitorais, é nas democracias – e somente nelas – que as minorias têm preservados e garantidos seus direitos de todas as ordens, tais como os sociais, os civis e os políticos.

O ato de reconhecer a derrota demonstra, a um só tempo, aceitação de duas regras fundamentais de uma democracia: de um lado, o reconhecimento, pelo perdedor, da legitimidade da disputa e do eleito e, de outro lado, o reconhecimento, pelo vencedor, de que o adversário minoritário do ponto de vista das preferências do eleitorado continua tendo seu direito de existência e de participação política preservados, podendo voltar ao poder quando nova alternância ocorrer.

As democracias atuais encontram-se em dificuldade por todo o globo. Sofrem por sua qualidade, pelas desigualdades que acometem seus cidadãos, pelas suas promessas de bem-estar e qualidade de vida não necessariamente cumpridas. Esses problemas acabam por afastar os cidadãos da política, seja por descrédito, por desinteresse ou por falta de razões que justifiquem até mesmo o trabalho de votar. As democracias sofrem também, como temos visto, pela ausência de apreço de seus líderes – que deveriam ser seus maiores defensores — pelos valores da coisa pública.


Mônica Sodré é cientista política e diretora executiva da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade).


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