Foto: Lúcio Bernardo Jr./Agência Brasília - 04.mai.2020
Foto: Lúcio Bernardo Jr./Agência Brasília - 04.mai.2020

Como os dados de covid-19 têm sido coletados e analisados nos municípios e estados?

Isabel Opice e João Abreu

Crise de saúde revelou problemas que estão presentes no dia a dia da gestão pública. Políticas públicas mais assertivas demandam sistemas de informações robustos e governos com alta capacidade analítica

A pandemia da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, explicitou como o uso inteligente de dados pode ser um importante aliado da gestão pública na identificação de gargalos e aprimoramento do sistema de saúde. Informações confiáveis e qualificadas possibilitam a antecipação de cenários e o planejamento de ações mais assertivas que impactam diretamente a vida da população.

O debate sobre políticas públicas baseadas em evidências muitas vezes se debruça sobre decisões tomadas com base em indicadores objetivos. Porém, para que o processo de tomada de decisão com base em dados funcione, a gestão pública precisa lidar com desafios que se apresentam desde a coleta das informações na ponta até sua consolidação e análises. A crise do coronavírus lançou luz sobre alguns desses obstáculos.

Com atuação direcionada para potencializar a capacidade analítica dos governos, nós, da Impulso, organização não governamental focada em aprimorar a coleta e análise de dados dos serviços de saúde, temos trabalhado lado a lado com servidores públicos de estados e municípios na resposta à crise. Ao longo de 2020, pudemos vivenciar muitas dessas dificuldades e apoiar a busca por soluções.

Falta de integração entre sistemas compromete análise

No Brasil, os três sistemas mais importantes para a visibilidade da pandemia — Sivep, GAL e e-SUS VE — trazem informações fragmentadas. O Sivep (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica) é focado no monitoramento das internações hospitalares de SRAG (síndrome respiratória aguda grave), que podem ou não ser resultantes da covid-19. Já o e-SUS VE (e-SUS Vigilância Epidemiológica), sistema oficial de notificação de covid-19 do Ministério da Saúde, deve ser atualizado por estados e municípios com os registros de todos os casos já confirmados e suspeitos do novo coronavírus, incluindo ocorrências leves de síndrome gripal.

Somente os testes são capazes de confirmar se os casos suspeitos registrados no Sivep e e-SUS devem ser, de fato, contabilizados como contaminações por covid-19. É um terceiro sistema, o GAL (Gerenciador de Ambiente Laboratorial), que centraliza as informações sobre os resultados de testes laboratoriais para coronavírus.

Uma política de saúde pública mais assertiva demanda sistemas de informações cada vez mais robustos, com integração de esforços para coleta, armazenamento e análise de dados, e governos com alta capacidade analítica

Ocorre que a atualização desses resultados no e-SUS não é automática, gerando falhas e duplicidades. É possível, por exemplo, que uma pessoa registrada como suspeita de covid no e-SUS tenha a contaminação descartada na testagem sem que, necessariamente, a informação seja atualizada no sistema do Ministério da Saúde. A falta de integração entre os sistemas dificulta o cruzamento de dados e prejudica a análise do cenário da covid-19 em cada território, impactando a definição de medidas de prevenção e monitoramento.

O cenário faz com que governos locais busquem desenvolver fluxos próprios de informação, mas a tentativa esbarra em mais obstáculos. Dificuldades de infraestrutura anteriores à pandemia fazem com que a rotina de notificações em papel seja uma realidade para muitas unidades de saúde, por exemplo. Mas soluções têm sido criadas e a tecnologia vem apoiando a superação desses e outros desafios.

Boletim epidemiológico economiza mais de 100 horas por semana de servidores

Na busca por responder à crise, vimos, por exemplo, um governo consolidar as notificações de covid-19 que chegavam de diferentes municípios por diversos meios, incluindo WhatsApp, em uma lousa branca.

O problema desse processo é que, além de ele ser extremamente manual, muito lento e sujeito a erros, a lousa usada era apagada todos os dias, o que impedia a criação de um histórico mais confiável das informações. Servidores do estado trabalhavam, noite e dia, nos esforços para manter o painel atualizado, sobrecarregados por uma rotina que começava às 5h e sugava todas as horas da equipe.

A solução, desenvolvida em parceria com os servidores, foi automatizar as análises do boletim epidemiológico do estado, padronizando o preenchimento das informações para todos os municípios. A novidade agilizou a atualização dos dados, possibilitando que os servidores redirecionassem mais de 100 horas semanais para outras atividades de inteligência e planejamento da resposta ao coronavírus.

Formulário eletrônico melhora visualização de dados em municípios

Em outra situação, um município de médio porte identificou obstáculos no repasse, para o setor de Vigilância Epidemiológica, das notificações de síndrome gripal geradas pelas equipes da ESF (Estratégia Saúde da Família), que acompanham de perto a população. A coleta de dados realizada em fichas de papel exigia importante mobilização de recursos humanos. Havia também uma fragilidade das informações, já que o uso do papel impedia a exigência de preenchimento obrigatório dos campos, gerando lacunas e imprecisões.

Nesse caso, a criação de um Formulário Eletrônico de Notificação de Síndrome Gripal digital e gratuito deu mais agilidade e maturidade ao fluxo de dados dos serviços de saúde do município, integrando o trabalho da Atenção Básica com a equipe de epidemiologia e gerando economia com a eliminação do papel. Com a iniciativa, a gestão municipal passou a ter uma melhor visão das informações, o que melhora a qualidade do monitoramento da covid-19 no município e impacta diretamente a saúde da população. Após a primeira implementação, a solução foi adaptada e replicada em mais cinco municípios.

Conclusão: uma política de saúde pública mais assertiva demanda sistemas de informações cada vez mais robustos, com integração de esforços para coleta, armazenamento e análise de dados, e governos com alta capacidade analítica. A pandemia escancarou problemas que estão presentes no dia a dia da gestão pública. Os esforços e a busca por soluções estão só começando.

Isabel Opice é cofundadora e diretora de Operações da Impulso. É formada em economia pelo Insper, com mestrado em economia pela FEA-USP e em administração pública pela Harvard Kennedy School of Government. Foi da Secretaria de Governo do Estado de São Paulo. Também tem experiência no terceiro setor, tendo atuado no Instituto Ayrton Senna.

João Abreu é cofundador e diretor executivo da Impulso. É formado em economia pela FEA-USP, com mestrado em administração pública pela Harvard Kennedy School of Government. Trabalhou na SP Negócios, na prefeitura de São Paulo, por dois anos, à frente de projetos de PPP (parcerias público-privadas) e inovação, como a regulamentação do Uber na cidade. Foi fellow do Harvard Government Performance Lab (2019-2020).

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