
FOTO: PXHERE
Análise do Centro de Liderança Pública sobre 104 secretarias estaduais mapeadas mostra que apenas 25% têm lideranças femininas. Representatividade precisa estar no cerne das discussões sobre a profissionalização da gestão pública
Entre 1996 e 2018, 21 mulheres ocuparam o cargo de chefia nos ministérios. O número poderia ser significativo para quem o confunde com um indicador. No bojo da discussão da importância do uso de dados e evidências, porém, um dado só se torna indicador quando cumpre alguns requisitos básicos, como o grau de representatividade do dado a partir de um universo ao qual ele está sendo comparado.
Sendo assim, faremos aqui o nosso trabalho de casa de demonstrar que 21 de 188 vezes em que esses cargos estiveram vagos no período analisado não parece ser um resultado significativo. Segundo esse mapeamento, realizado pela pesquisadora Daniela Rezende (Ipea, 2016), observa-se que, mesmo em uma situação em que há livre nomeação por parte do presidente, as mulheres ficam à margem da representatividade.
Os desafios de acesso aos altos cargos do Poder Executivo também estão presentes na gestão atual dos secretariados estaduais do país. Para fins de análise, mapeamos o número atual de estados com mulheres à frente de quatro secretarias finalísticas estratégicas e comuns a todas as unidades federativas: Educação, Saúde, Assistência Social e Segurança Pública. O levantamento foi realizado a partir das informações disponibilizadas nos sites das secretarias estaduais até outubro de 2020.
Importante destacar que, dada a ausência de pesquisas do mapeamento histórico dos cargos citados, vamos nos conter em dizer aqui que as hipóteses levantadas apresentam como base um dado, e que ele ainda não se configura como um indicador, que seria caracterizado mais evidentemente por uma série histórica.
Das 104 secretarias desse recorte, somente 26 são ocupadas por mulheres. Ou seja, somente 25% dessas pastas são lideradas por mulheres. Observa-se que a maioria dessas profissionais estão nas secretarias de Educação e Assistência Social — essa última é ocupada por mulheres em 15 estados, enquanto as pastas de Segurança Pública não apresentam representação feminina em nenhum estado.
Para além dos motivos de conquistarmos uma sociedade mais igualitária, na qual homens e mulheres possam disputar cargos de confiança e pleitear a chefia de entes federativos, o debate sobre representatividade precisa estar no cerne das discussões acerca da profissionalização da gestão pública
Em políticas públicas, não tomar uma decisão também é um ato político. Sendo assim, iremos trazer aqui mais elementos acerca dessa discrepância da possibilidade de acesso de homens e mulheres aos cargos de chefia das secretarias estaduais.
O percentual das pastas da Segurança Pública e da Assistência Social ocupadas por mulheres destoa no placar geral, e esses extremos parecem fazer mais sentido analítico e por isso torna-se importante levantar hipóteses acerca do tema. É de conhecimento comum que a Segurança Pública está ligada a carreiras militares, ou ao menos hierarquizadas, e que essas posições são ocupadas por homens, o que dificulta o acesso das mulheres às chefias das pastas dessa temática. Já na temática de Assistência e Desenvolvimento Social, ao observamos o histórico da política pública, ainda podem existir resquícios da conexão entre desenvolvimento social e assistencialismo ou caridade, pautas que carregam o estereótipo de serem temáticas “de mulheres”.
Importante destacar que não temos como objetivo diminuir o trabalho realizado por mulheres à frente dessa pasta — pelo contrário, reconhecemos os avanços feitos para tornar o tema uma política pública de segurança social. No entanto, o percentual de 60% das chefias dessas pastas serem ocupados por mulheres, em comparação com 0% na Segurança Pública e 3% na Saúde, podem reforçar alguns estereótipos em relação aos temas liderados por mulheres na gestão pública..
Vamos um pouco além na análise. Para isso, retomaremos um discurso conhecido na vida de muitas mulheres. Durante a infância e a adolescência, é incomum meninas serem incentivadas a seguirem carreiras nas áreas de ciências exatas. Afinal, muitas vezes isso é taxado como “coisa de menino”. Uma das possíveis consequências dessa cultura é identificar que somente três estados do Brasil têm lideranças femininas nas pastas estaduais de Planejamento, Orçamento, Finanças ou Fazenda. E podemos garantir, com dados e evidências, que existem mulheres capazes de gerenciar grandes reformas orçamentárias.
A secretária de Planejamento e Orçamento Leany Lemos foi responsável por liderar a Reforma Estrutural do Estado do Rio Grande do Sul (Reforma RS) , um programa que visa proporcionar um equilíbrio fiscal de longo prazo para as contas públicas do estado. Em entrevista para o CLP (Centro de Liderança Pública) em outubro, a ex-secretária conectou dados e projeções econômicas com propriedade e conhecimento técnico aplicado. Sua expertise de uso de dados também resultou em ações de contenção da covid-19 no estado.
Competência não falta. Então o que impede de termos mulheres à frente de qualquer temática, sem que isso reforce estereótipos históricos? Qual a relevância de termos lideranças femininas nesses cargos?
Para além dos motivos de conquistarmos uma sociedade mais igualitária, na qual homens e mulheres possam disputar cargos de confiança e pleitear a chefia de entes federativos, o debate sobre representatividade precisa estar no cerne das discussões acerca da profissionalização da gestão pública e da nova gestão pública. Ver lideranças femininas ocupando cargos do alto escalão inspira outras mulheres a estarem nesses lugares.
Além disso, diante de um cenário global em que as mulheres continuam ganhando menos do que os homens, os salários dos cargos de livre provimento são respaldados por burocracias que garantem salários iguais — ou seja, o mínimo de garantia de igualdade salarial é oferecido para essas lideranças, uma pequena conquista em um vasto universo de desigualdade de salários. Importante ressaltar que a análise diz respeito à remuneração dos cargos de confiança. Não é possível utilizar o mesmo argumento para os valores acumulados derivados de cargos efetivos dos secretários que já estavam no aparato do Estado.
Por fim, reforça-se a lógica de que toda escolha (ou, neste caso, uma não escolha) é uma renúncia.
Quando tratamos de política pública, não fazer escolhas, também é um ato político. E esta vertente também se estende para esse cenário que acabamos de evidenciar. No cenário de baixa representatividade feminina nos cargos de livre nomeação, não equilibrar a questão de gênero no Executivo também é um renúncia que custa caro para as mulheres que tentam há anos serem reconhecidas e ocuparem cargos de liderança na gestão pública.
Leila Sousa é pós-graduanda em gestão pública e liderança pelo CLP (Centro de Liderança Pública) e gestora pública pela Universidade de São Paulo.
Os artigos publicados na seção Ponto de vista do Nexo Políticas Públicas não representam as ideias ou opiniões do Nexo e são de responsabilidade exclusiva de seus autores. A seção Ponto de vista do Nexo Políticas Públicas é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional. Para participar, entre em contato por meio de pontodevista@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.
Navegue por Temas