Os rios da Amazônia, em 7 pontos

Adalberto Luis Val, Vera Maria Fonseca de Almeida-Val, Pedro Val e Tiago da Mota e Silva
FOTO: Wikimedia Commons
Imagem aérea do rio Amazonas
Como os rios da Amazônia se formaram e se transformaram na atual bacia hidrológica? Quais são as características da biodiversidade presente nos ecossistemas aquáticos da bacia? O que pode ameaçá-la? Conheça evidências sobre o tema

Da alta parte da cordilheira dos Andes, no sul do Peru, nasce o rio Apurímac que, ao longo de seu percurso, recebe muitos nomes: Carhuasanta, Lloqueta, Ene, Tambo, Ucayali, Solimões e, finalmente, Amazonas, desaguando no oceano Atlântico, no norte brasileiro. Esse rio de muitos nomes possui 269 afluentes e se conecta com outros grandes sistemas de águas, como os rios Madeira, Negro, Japurá, Tapajós e Purus, dentre outros. Juntos, eles formam a maior rede hidrográfica do mundo, com 1.700 rios que se estendem por nove países: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Venezuela, Suriname e, é claro, o Brasil.

Ao longo de todo o seu desenho, a bacia impõe condições aos organismos que os conduziram a capacidades adaptativas formidáveis. Nessas águas vivem 20% da diversidade de ictiofauna (peixes) de água doce atualmente conhecida no mundo, além de outros organismos que compõem a biota aquática, como ariranhas, peixes-bois, botos, cobras, jacarés, tartarugas, insetos, plantas aquáticas, etc. Mas também toda a fauna e a flora amazônica terrestre depende, justamente, dos recursos e nutrientes que as águas levam para dentro das florestas graças aos rios e igarapés.

Podemos resgatar aspectos desta longa história até chegar aos dias atuais, com as pressões que o rio sofre diante do desmatamento, de mudanças climáticas, de aumento de temperatura, da maior quantidade de carbono dissolvido nas águas e da menor disponibilidade de oxigênio nelas. Hoje, estamos passando por uma seca histórica na Amazônia que oferece estressores significativos a todas as vidas, humanas e não-humanas, que dependem dos rios.

1. Como se formou a bacia do Rio Amazonas?

Foi “apenas” há 200 milhões de anos que, lentamente, o supercontinente Pangéia começou a se fragmentar, dando forma aos continentes que conhecemos hoje. Antes unidos, dois dos filhos de Pangeia tiveram de seguir caminhos distintos: a América do Sul e a África. O ciclo tectônico desta grande separação culminou na formação dos Andes, a oeste da América do Sul, há cerca de 30 a 10 milhões de anos, e proporcionou à América do Sul uma saída para o Oceano Atlântico. Essas duas ocorrências, cordilheiras à oeste e oceano à leste, cederam as duas principais condições para que a bacia hidrográfica do Amazonas começasse a tomar as proporções que conhecemos atualmente.

Há muito debate entre os pesquisadores em relação a quando o rio Amazonas e sua bacia começaram a surgir. Uma das hipóteses é esta: quando os Andes alcançaram quatro quilômetros de altura, o ainda incipiente rio que fluía no sopé das montanhas em direção ao Rio Orinoco começou a se transformar e a correr para leste. O movimento tectônico relacionado à separação da Pangéia deu origem à força necessária para que a costa oeste da América do Sul obtivesse uma cadeia de montanhas. Quando as cordilheiras peruanas atingiram 2,5 quilômetros de altura, elas se tornaram elevadas o suficiente para formar um muro que bloqueia a circulação atmosférica na região, concentrando, assim, chuva aos pés das montanhas.

Porém, antes de ser um sistema de rios, a Amazônia era um sistema de lagos e pântanos! Nos últimos 20 milhões de anos, a subida dos Andes foi deformando a crosta da parte ocidental da Amazônia, formando uma cuia, ou tigela, na qual foi possível que água se acumulasse ali embaixo. Com isso, os grandes aquíferos da região começaram a ser desenhados. Enormes cargas sedimentares que erodem dos Andes foram carregadas até os megaleques aluviais, com águas acumuladas tanto pela chuva quanto pela ocasional entrada de águas vindas do mar. Então, entre 23 a 10 milhões de anos atrás, a Amazônia ocidental era toda coberta por uma mega extensão de zona úmida conhecida como sistema Pebas.

Esse sistema dominado por lagos se espalhava por um milhão de quilômetros quadrados. Sua superfície rica em nutrientes, devido aos sedimentos vindos da montanha, tornaram esses lagos o lar ideal para o desenvolvimento de uma diversidade de vida aquática por mais de 10 milhões de anos, como moluscos e répteis que moravam em suas praias. Mas a cordilheira continuou a subir e alterações climáticas ocorreram na região, ocasionando transformações continentais que conectaram a parte ocidental da Amazônia com a oriental, abrindo caminho para que toda aquela água corresse para o oceano. Lentamente, a água que dali fluiu foi tomando os cursos que conhecemos hoje e a Amazônia mudou de um sistema de pântanos para um sistema de rios.

A região amazônica já passou por mudanças intensas. O desaparecimento do sistema Pebas, por exemplo, teria levado à extinção espécies que viviam em suas praias. Os últimos 2,5 milhões de anos -- o período chamado de Quaternário, no qual ainda estamos -- foram também marcados por mudanças climáticas que impactaram a vida e a biodiversidade da região. Em todo o mundo, esse período foi marcado por flutuações glaciais e interglaciais. Por glaciais, refere-se a períodos em que a Terra está mais fria, mais popularmente conhecidos como Eras do Gelo. Em linhas gerais, os períodos glaciais levaram a maior concentração de geleiras nos Andes e, nos períodos interglaciais, o degelo e chuvas mais frequentes levaram mais água e sedimentos para o pé das montanhas e para a bacia logo abaixo. Já faz cerca de 11,7 mil anos, porém, que o planeta encontra-se em um período interglacial, com temperaturas mais quentes. Estas mesmas flutuações também alteraram os níveis do mar: nos períodos glaciais, com nível do mar mais baixo, os rios da bacia amazônica puderam fluir mais profundamente; enquanto, em nível mais alto por consequência do derretimento de calotas de gelo, estabilizaram, com mais sedimentos em seu leito.

2. Quais são os tipos de água da bacia?

A cordilheira dos Andes cria uma barreira para os ventos quentes e úmidos vindos desde o oceano Atlântico. Esses ventos, por sua vez, interagem com elementos ambientais como a vegetação e a evapotranspiração da floresta, tipos diferentes de solo ou com a incidência de radiação solar . É a soma desses componentes que explica a abundância de chuvas na região que, basicamente, conta com duas estações: uma estação quente e chuvosa, que dura a maior parte do ano, e outra, chamada “verão amazônico”, entre julho e novembro, que também é quente, mas com poucas chuvas.

Todas essas características explicam o porquê de também existirem uma variedade de tipos de água na bacia. São três, cada um deles refletindo certas características geológicas e bioquímicas: rios de água branca, escura e clara. O Rio Negro, por exemplo, recebe esse nome pela cor escura das águas, semelhante a cor de café. Esse tipo de água é pobre em nutrientes e altamente ácida, com pH que varia de 3.5 a 6. Sua cor está ligada à decomposição de sedimentos de plantas que escorrem para água devido ao solo arenoso em que habitam. As águas claras, como dos rios Xingu e Tapajós, apresentam mais conteúdos minerais e menos acidez que as águas escuras, apesar de também se originarem de solos pobres. Por fim, as águas brancas, como as do Rio Solimões-Amazonas, são, na verdade, de aparência mais lamacenta justamente por carregar consigo um lodo que vem desde a cordilheira dos Andes.

3. Quais são os ecossistemas aquáticos que existem na Amazônia?

Toda a bacia do Amazonas é composta por rios, mas também por canais, lagos, igarapés, igapós, praias e várzeas. O seu sistema aquífero reserva 162 mil km³ de água, que seriam capazes de abastecer o planeta inteiro. Tal diversidade e disponibilidade de águas são também resultado de uma variedade de solos, com diferentes propriedades de permeabilidade, criando um mosaico de rios e aquíferos como conhecemos. Aqueles solos compostos por mais substrato de rocha, por exemplo, permitem que a água dos rios não seque com tanta facilidade e, com isso, tornam os ecossistemas que dependem deles mais resilientes às mudanças climáticas.

O fluir dos rios está diretamente relacionado à formação de alguns dos lagos da região, mas há também aqueles lagos considerados antigos e que não estão conectados a rios, como é o caso do Morro dos Seis Lagos, localizados próximo ao município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Já igarapés são pequenos canais de água que se esparramam pela região. Eles ocorrem por estarem em áreas de relevo mais baixo que os próprios rio, permitindo que as águas escoem para muitas direções.

Por fim, outras paisagens muito reconhecidas da região são as florestas alagadas. Durante o período de chuvas, os rios sobem tanto ao ponto de alagar vastas áreas com relevos mais baixos. Desenvolveram-se, assim, ecossistemas com uma interface entre ambientes aquáticos e terrestres e com uma biota adaptada para a vida na água ou para solos encharcados. Áreas alagadas por rios de água branca são os mais comuns e abrigam cerca de mil espécies diferentes de árvores adaptadas ao alagamento.

4. Qual é a relação entre os ecossistemas aquáticos e as florestas da Amazônia?

A maior parte da fauna e da flora amazônica terrestre depende, justamente, dos recursos que os diferentes igarapés levam para dentro das florestas. Afinal, os ecossistemas aquáticos da Amazônia são dominados por insetos e bactérias que ajudam a decompor matéria orgânica e a reciclar nutrientes que são carregados pelas águas.

Também a conexão entre rios e áreas alagadas, nas épocas de cheia, são outro fator que ajuda a repor nutrientes de um habitat a outro. Por isso, as florestas alagadas acabam sendo ecossistemas mais produtivos, sobretudo em disponibilidade de alimentos, devido ao fluxo de nutrientes que os rios de água branca trazem para dentro delas. A produção terrestre de matéria orgânica e nutrientes que servem de base para a cadeia alimentar depende dessas águas que encharcam essas regiões, além de terem um papel crucial na migração e nos ciclos reprodutivos de muitos peixes. Quantidades massivas de peixes, inclusive, que vêm de águas brancas e migram para águas pretas, conforme a oscilação dos níveis dos rios, carregam nutrientes de um habitat para outro, beneficiando novas interações ecológicas.

5. Quais são as características da biodiversidade presente nos ecossistemas aquáticos da bacia?

Os diferentes tipos de água, no entanto, proporcionaram variadas adaptações fisiológicas entre os peixes da bacia. As águas escuras da Amazônia, por exemplo, são sistemas extraordinariamente biodiversos embora sejam um dos ambientes mais ácidos da face do planeta e com baixa disponibilidade de oxigênio. Essas complexas dinâmicas geraram, enfim, a variedade mais recente de espécies igualmente impressionante, sobretudo de peixes: nos dias de hoje, a bacia amazônica abriga cerca de 3000 espécies da ictiofauna e 45% destas ocorrem somente nesses biomas.

O tambaqui (Colossoma macropomum) é um excelente exemplo, dentre muitos outros, da resiliência e da adaptabilidade das espécies aquáticas amazônicas. Este é um peixe que pode chegar a um metro de comprimento e peso de até 30 kg, muito apreciado na culinária amazonense. Apenas a cidade de Manaus chega a consumir 400 toneladas de tambaqui por ano, dando a nós uma noção da relevância socioeconômica desta espécie. Comum em águas com menor disponibilidade de oxigênio, o tambaqui desenvolveu a capacidade de expandir seus lábios inferiores para capturar o oxigênio disponível na superfície das águas, garantindo assim sua sobrevivência sobretudo nos períodos de seca. E esse é apenas um de muitos casos de adaptação.

6. Como estão os rios da Amazônia hoje?

Como se percebe, as águas da Amazônia foram cruciais no desenvolvimento de seus biomas desde tempos imemoriais. Ao longo desta história, mudanças no curso das águas ou de sua composição também levaram a transformações nos habitats. Consequentemente, tanto a fauna quanto a flora desenvolveram adaptações frente a novos desafios. Porém, processos como esses que ocorrem ao decorrer de longos anos passaram a acontecer, atualmente, em tempo acelerado devido à degradação de territórios. Tais mutações nos ambientes tornaram-se mais velozes do que a própria capacidade das espécies em se adaptarem a elas. Eventos extremos, como a seca que está ocorrendo neste instante, são tristes exemplos disso.

Seja pelo desmatamento ou por queimadas, áreas que outrora eram florestas passam por um processo de savanização: tornam-se territórios com cobertura de até 40% de árvores, em sua maioria menores do que 8 metros, e com uma camada de grama que cobre o solo. Outra consequência dessa degradação é a perda de áreas alagadas, em decorrência de períodos mais prolongados de seca devido à perda de vegetação. Por consequência, tornam-se também ecossistemas extremamente frágeis e severamente prejudicados em termos de comunidades aquáticas que são capazes de hospedar.

Outro risco ao curso dos rios é a construção de barragens para geração de energia hidrelétrica. A inundação de grandes áreas leva à perda de ecossistemas, à mudanças drásticas nos padrões migratórios da vida aquática e ao desmatamento, não apenas pelo acúmulo das águas, mas também devido à atração de população pela presença da obra, ao aumento da pecuária e de outras atividades que passam a ocorrer na região. Construída em 1987, a barragem de Balbina, por exemplo, represou o Rio Uatumã. À época havia o compromisso de encher o reservatório até 46 m, formando um lago de 1.080 km2, mas as medições mais recentes com imagens de satélite contabilizam 2.996 km2 de extensão do alagamento. A perda de uma área tão grande para geração de tão pouca energia (250MW) fez de Balbina um desastre ambiental.

Por fim, temos vastos exemplos de como o aumento das médias de temperatura também afeta as águas, que se tornam mais quentes. Águas mais quentes somadas à elevação de dióxido de carbono na atmosfera, pela poluição, formam uma associação de condições extenuantes para muitos peixes que já vivem, hoje, perto de seus limites térmicos. Isto porque o carbono do ar também se dissolve nas águas, o que as deixa ainda mais ácidas e com menor disponibilidade de oxigênio, enquanto o aumento de temperatura tem a tendência de levar esses animais a aumentar sua demanda por oxigênio.

7. Quais são os riscos de períodos de seca mais severos na Amazônia?

Estamos vivendo um período crítico em toda a bacia Amazônica. Em 2023, o período de estiagem, conhecido como “verão amazônico”, está rapidamente se tornando o mais severo da história, com a possibilidade de se estender até janeiro. Trechos de rios importantes, como o Negro, estão chegando próximos a vazões abaixo da média para a estação, assim como outros sistemas fluviais ingualmente cruciais, como o Madeira e o Purus. Isto tem conduzido ao aumento da temperatura das águas e a uma ainda menor disponibilidade de oxigênio nelas, estressando a vida aquática amazônica para além de suas capacidades de adaptação. Relatos de pescadores e ribeirinhos contam sobre grandes quantidades de peixes mortos, além de botos, pelo menos 110 encontrados mortos no lago Tefé no final de setembro. Essas mortes estão diretamente ou indiretamente ligadas ao aumento de temperatura nas águas, que chega a 40ºC.

O principal responsável por essa seca fora do comum é o El Niño: um padrão climático formado pelo aquecimento das águas no Oceano Pacífico que resulta em menos chuvas nas regiões norte e nordeste do Brasil. Porém, um aquecimento do oceano Atlântico, devido às mudanças climáticas, também contribui para trazer ar quente para a Amazônia, dificultando a formação das chuvas. Soma-se a isso o desmatamento e as queimadas, que mudam o padrão de vegetação e, consequentemente, alteram o fluxo de águas por evapotranspiração na estação seca -- um fluxo menor atrasa o retorno da época de chuvas.

Essa combinação de fatores é altamente prejudicial à biota da região justamente por impor alterações drásticas nas dinâmicas e conexões entre os ecossistemas aquáticos e terrestres. Ora, se a vida é afetada pela seca também, é claro, são afetadas comunidades humanas que vivem na Amazônia e dependem de suas águas para o transporte fluvial, para a higiene, para o consumo e para a alimentação, tendo também em vista sua dieta baseada na pesca.

BIBLIOGRAFIA

“The Amazon We Want”. 2020. The Amazon We Want. Disponível aqui.

Val, A. L., e V. M. F. de Almeida-Val. 2012. Fishes of the Amazon and Their Environment: Physiological and Biochemical Aspects. Springer Science & Business Media.

Adalberto Luis Val é biólogo, doutor em biologia de água doce e pesca interior. Atualmente coordena o INCT ADAPTA e estuda adaptações da biota aquática da Amazônia à mudanças ambientais, incluindo mudanças climáticas.

Vera Maria Fonseca de Almeida-Val é bióloga, doutora em biologia de água doce e pesca interior e, atualmente, lidera o Laboratório de ecofisiologia e evolução molecular no LEEM-INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).

Pedro Val é geólogo, doutor em earth sciences pela Syracuse University, professor na Queens College - City University of New York e investiga os processos que controlam a evolução de paisagens com foco em planícies continentais, regiões montanhosas e nas interações entre clima, tectônica e erosão fluvial.

Tiago da Mota e Silva é jornalista, doutor em comunicação e semiótica e bolsista de DTI-A (desenvolvimento tecnológica e industrial) pelo INCT-ADAPTA, onde desenvolve um projeto de comunicação científica sobre o impacto das mudanças climáticas nos biomas amazônicos.

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