O uso de energia limpa na frota de ônibus urbana, em 9 pontos

Camila Ludovique, Bruno Cunha, Isabela Almeida, Huang Wei, Roberta Oliveira, Talita Borges Cruz e Alexandre Szklo
FOTO: divulgação BYD
Ônibus elétrico em avenida
Entenda os impactos e os benefícios da substituição de ônibus urbanos a diesel pelos elétricos no contexto nacional

Em junho deste ano, uma MP (medida provisória) foi lançada pelo governo federal para revitalizar o mercado automobilístico brasileiro. Com foco em facilitar o acesso a veículos novos tanto para consumidores individuais quanto corporativos, a MP propõe incentivos fiscais para fabricantes automotivos. Estes créditos tributários têm o objetivo de diminuir os custos dos veículos para os consumidores, abrangendo desde automóveis até veículos mais robustos, com o pré-requisito de que sejam respeitados certos critérios.

O cerne desse programa reside na renovação de parte da frota nacional por meio da introdução de veículos mais modernos, sendo disponibilizados R$ 1,5 bilhão em recursos, divididos em R$ 500 milhões para veículos leves, R$ 300 milhões para ônibus e vans, e R$ 700 milhões para caminhões. Eficiência energética e conteúdo nacional do veículo vendido estão entre os requisitos para a concessão dos créditos. Dessa forma, quanto maior a eficiência e nacionalização do veículo, maiores serão os descontos a serem oferecidos.

No que tange os veículos pesados, a MP destaca a adoção de tecnologias alinhadas ao chamado ‘padrão Euro 6’ ou que sejam elétricas. Este padrão é reconhecido mundialmente por suas diretrizes rigorosas no combate à poluição, estabelecendo limites para emissões veiculares prejudiciais ao meio ambiente. Substituir veículos antigos por aqueles equipados com motores Euro 6 ou elétricos, portanto, significa promover um ar mais limpo, o que repercute positivamente na saúde pública.

No entanto, a NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) aponta falhas nesse plano, especialmente no que se refere aos ônibus. A MP define que caminhões e ônibus precisam ter, no mínimo, 20 anos de uso para serem elegíveis à troca. Contudo, dados da própria NTU revelam que a vida útil média de um ônibus urbano no Brasil é de cerca de 6 anos, conforme dados de 2021.

Essa incoerência levanta questões essenciais: A MP realmente atende às necessidades da frota de ônibus urbana? Entre as opções tecnológicas, qual é a mais adequada: o ônibus a diesel Euro 6 ou o elétrico? E, afinal, está MP será suficiente para alcançar uma modernização significativa do transporte público no país?

1. Existe alguma ferramenta que demonstre e avalie a viabilidade da eletrificação do transporte urbano?

Desenvolvida pelo Laboratório Cenergia da UFRJ em parceria com o iCS (Instituto Clima e Sociedade), a ferramenta ATENA surge como uma ferramenta de suporte para prover uma resposta direta aos desafios da eletrificação no transporte urbano. Ao mergulhar nas complexidades de opções tecnológicas, modelos financeiros e operacionais, a ferramenta constrói uma ponte entre o teórico e o prático.

Utilizando equações matemáticas, o modelo tece conexões entre aspectos técnicos, econômicos e ambientais, proporcionando uma visão panorâmica de cenários diversos. Isso inclui desde a logística de recarga até as consequências econômicas e ambientais de cada escolha.

Tomemos Curitiba como um estudo de caso. Celebrada por sua vanguarda no transporte público, a cidade movimenta diariamente mais de um milhão de passageiros com seus mais de mil ônibus, somando cerca de 200 mil quilômetros por dia (veja a Figura 1). Esta vasta operação, gerida por dez empresas em três consórcios, equilibra suas finanças entre receitas de tarifas e subsídios. Através da lente de ATENA, analisamos um contrato de renovação de frota estendendo-se de 2022 a 2038, e os resultados são detalhados a seguir.

2. Quanto tempo um ônibus vive?

Já se perguntou sobre a duração de um ônibus urbano em atividade? Os números de Curitiba, fornecidos pela URBS e Sindipeças, trazem uma perspectiva. Aproximadamente um terço de sua frota já rodou por uma década ou mais, enquanto quase metade tem entre 6 a 10 anos de uso. Os novatos, com menos de 5 anos, representam somente 19%.

Essa distribuição etária demonstra uma realidade inegável: os ônibus da cidade estão mostrando os sinais do tempo. Considerando o ritmo desgastante com que operam, estima-se que a média de vida útil seja de dez anos. Isso significa que, em 2023, Curitiba estará diante da necessidade de renovar ao menos 348 ônibus. E olhando até 2038, será preciso incorporar 70 a 100 novos ônibus anualmente para manter a frota atualizada (veja na Figura 2).

Neste sentido, a recente Medida Provisória traz uma cláusula um tanto restritiva: apenas os ônibus com duas décadas de serviço são considerados aptos para troca sob os incentivos da MP. Isso levanta um dilema para Curitiba e muitas outras cidades: a grande maioria de seus ônibus, embora mostrando sinais claros de desgaste, ainda não atingiu esse marco de 20 anos. Portanto, a cidade pode enfrentar desafios para acessar os créditos tributários propostos, uma situação que exige uma avaliação mais profunda das políticas públicas voltadas à priorização do transporte coletivo urbano.

3. Qual fonte de energia é mais vantajosa: diesel ou eletricidade?

O cerne desta investigação era determinar a melhor opção energética para a renovação da frota, equilibrando impactos ambientais e socioeconômicos. Afinal, uma frota limpa e tecnológica não é plenamente sustentável se os preços das tarifas forem proibitivos para a população.

Nossa análise indicou que, mesmo exigindo maior aporte financeiro no início, os retornos e os custos operacionais a longo prazo posicionam os ônibus elétricos no mesmo patamar de viabilidade que os ônibus a diesel. Além disso, eletrificar os ônibus significaria a independência em relação às flutuações do preço do diesel, oferecendo uma tarifa mais previsível ao passageiro.

4. Qual o investimento necessário para esta transição?

Para Curitiba, em um horizonte de 15 anos, a transição para uma frota elétrica de veículos tipo Padron 1 exige um investimento de R$ 8,04 bilhões, ligeiramente superior ao orçamento de R$ 7,96 bilhões para renovação com veículos a diesel. Esta margem de R$ 800 milhões reflete o investimento (CAPEX) elevado das opções elétricas, atribuído, em parte, à baixa escala e ao custo elevado de produção dos veículos movidos a bateria.

Por outro lado, ao se observar o custo operacional (OPEX), a operação elétrica demonstra sua economia. Estima-se uma redução de cerca de R$ 800 milhões nos custos operacionais, graças à menor necessidade de manutenção e à eliminação de gastos com combustíveis. No entanto, adicionam-se aos custos as despesas associadas à propulsão elétrica, como a reposição de baterias e logísticas específicas.

5. A passagem do veículo elétrico seria mais cara?

Segundo nosso estudo, do ponto de vista tarifário, a discrepância é sutil. Enquanto veículos elétricos teriam uma tarifa de R$6,00, os a diesel ficariam em R$5,95. Esta pequena variação torna-se ainda mais insignificante, ao considerarmos as vantagens ambientais e a redução da poluição sonora proporcionadas pelos elétricos.

6. Quão expressiva é a economia de diesel?

Ao analisarmos o consumo energético, Curitiba apresenta uma impressionante redução projetada no período de 264 milhões de litros de diesel. Ampliando a visão para o cenário nacional, e supondo que todos os ônibus urbanos do tipo Padron sejam eletrificados até 2038, a economia potencial de diesel ultrapassa a marca de 27 bilhões de litros durante o intervalo considerado. Destaca-se o Sudeste com o potencial mais robusto de diminuição, evitando o consumo de cerca de 13,9 bilhões de litros (conforme Figura 3). Vale lembrar que o Brasil importa volumes consideráveis de diesel.

No entanto, não podemos negligenciar o aumento na demanda de energia elétrica. Tomando Curitiba como exemplo, a projeção para 2023 indica uma demanda energética de 20 GWh, pulando para 46 GWh em 2030 (um acréscimo de 130%) e alcançando 59 GWh em 2038 (aumento total de 190%). Isso traduz um panorama claro: a adoção de ônibus elétricos implica uma migração energética, ampliando a dependência de energia elétrica e diminuindo substancialmente o consumo de diesel.

7. E as emissões de poluentes? Reduzem mesmo?

Na pesquisa climática, usamos um parâmetro conhecido como CO2 equivalente. Essa métrica converte o efeito de todos os gases de efeito estufa para o equivalente em dióxido de carbono, simplificando as análises e facilitando comparações relativas ao impacto desses poluentes no meio ambiente.

Com base nesse conceito, a eletrificação dos ônibus resultou em uma significativa diminuição nas emissões. Concretamente, previmos uma economia de 615 mil toneladas de CO2 equivalente durante o período investigado. É digno de nota o declínio expressivo nas emissões de NOx (óxidos de nitrogênio) e material particulado, com totais estimados em 7 mil toneladas e 90 toneladas, respectivamente.

Tais cortes não só beneficiam o meio ambiente, mas também têm um impacto direto na saúde pública, ajudando a reduzir a incidência de doenças cardiovasculares e problemas respiratórios. Adicionalmente, a cidade se beneficiaria de um ambiente mais tranquilo, uma vez que os veículos elétricos operam de forma consideravelmente mais silenciosa em comparação aos seus pares movidos a diesel.

8. Um transporte público, elétrico e acessível a todos, é possível?

Imagine um transporte público em Curitiba onde diferentes grupos de cidadãos tenham acesso facilitado ou até mesmo gratuito. Em nossa análise, mergulhamos nesse cenário e contemplamos várias opções de gratuidade segundo diferentes categorias:

- Idosos, pessoas com deficiência e estudantes com renda de até 5 salários mínimos, que pagariam apenas metade da tarifa;

- Beneficiários do programa Bolsa Família;

- Estudantes totalmente isentos;

- Pessoas com renda de até 1 e de até 2 salários mínimos.

Além dessas categorias, imaginamos uma situação onde todos os passageiros pagassem uma "tarifa-teto" de R$3,00.

Os resultados? Bem, ampliar o acesso significa, obviamente, um aumento nos subsídios e um impacto nas receitas municipais. Para se ter uma ideia, ao considerarmos pessoas com renda de até 2 salários mínimos, teríamos um gasto anual de R$ 600 milhões, cerca de 6,5% da arrecadação da cidade (ver figura 4). Contudo, não se deve olhar apenas os custos diretos, os subsídios. A expansão desse acesso ao transporte de qualidade cobriria cerca de 59% dos passageiros de ônibus, se somados aos 13% já beneficiados atualmente.

E mais, ao proporcionar um transporte público de qualidade e acessível, a cidade também poderia colher ganhos de produtividade. Cidadãos com melhor mobilidade podem acessar empregos e oportunidades educacionais com mais facilidade, resultando em uma força de trabalho mais eficiente e uma economia mais dinâmica. É uma visão onde todos ganham: o indivíduo, a sociedade e a economia da cidade.

9. Há recomendações para políticas públicas para uso de energias renováveis no transporte urbano?

Integração de Energias Renováveis e Transporte Urbano: A transição para ônibus elétricos no panorama urbano brasileiro não é apenas um movimento em direção a um meio ambiente mais limpo, mas também uma estratégia econômica sensata. A recente Medida Provisória, apesar de suas limitações, destaca a urgência de modernizar a frota de ônibus, não apenas pela eficiência, mas também pela saúde pública e sustentabilidade ambiental.

Custos a Longo Prazo: Embora a eletrificação da frota possa exigir um investimento inicial maior, o retorno a longo prazo, tanto em termos de economia de combustível como em custos operacionais reduzidos, justifica essa mudança. A estabilidade nas tarifas, menos dependentes das flutuações dos preços dos combustíveis fósseis, é outro benefício tangível.

Benefícios Ambientais e Sociais: A economia potencial na emissão de poluentes é monumental. Cidades que adotam ônibus elétricos não apenas reduzem significativamente as emissões de CO2, mas também experimentam menos poluição sonora, contribuindo para a qualidade de vida de seus cidadãos. Além disso, a saúde pública se beneficia, com diminuição das doenças associadas à poluição do ar.

Acessibilidade e Inclusão: O transporte público elétrico e acessível não é apenas um ideal, mas uma possibilidade real. Ao tornar o transporte mais acessível para diversos grupos sociais, cidades como Curitiba têm a oportunidade de criar sistemas de transporte verdadeiramente inclusivos, ainda que isso exija uma reavaliação das políticas de subsídio.

Direcionamentos Futuros: Dada a incoerência entre a vida útil média dos ônibus e as disposições da Medida Provisória, sugere-se uma revisão das políticas, focando em diretrizes que estejam mais alinhadas com a realidade da frota urbana atual. Além disso, incentivos adicionais para a produção e aquisição de ônibus elétricos poderiam acelerar a transição energética no transporte público. Como líder econômico e principal exportador de ônibus, o Brasil apresenta uma das melhores oportunidades para fabricantes na América Latina

Hora da Ação: Com as ferramentas certas, como a ATENA, decisões informadas podem ser tomadas para guiar a jornada de eletrificação dos transportes urbanos. O caminho a seguir não é apenas sobre veículos elétricos, mas sobre a construção de cidades mais limpas, habitáveis e inclusivas para todos.

Em suma, a integração da energia limpa e do transporte urbano não é apenas um destino desejável, mas uma necessidade iminente. O Brasil tem uma oportunidade única de liderar a revolução no transporte urbano, criando modelos para outras nações emergentes seguirem. O futuro do transporte urbano é eletrificado, e a hora de agir é agora.

Camila Ludovique Callegari é engenheira de produção formada pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), mestre e doutora em planejamento energético pela COPPE/UFRJ. Atualmente, é pesquisadora pós-doutoranda na mesma instituição, desenvolvendo pesquisa na área de modelagem do setor de transporte como pesquisadora especialista do CenergiaLab (Centre for Energy and Environmental Economics).

Alexandre Szklo é engenheiro químico pela faculdade de química da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e doutor em ciências pela mesma instituição. É professor associado do Programa de Planejamento Energético da UFRJ (PPE/COPPE/UFRJ). É coordenador do desenvolvimento de modelos nacionais e globais de avaliação integrada e de otimização para refinarias de petróleo e suas aplicações em vários projetos internacionais e nacionais financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, Banco Mundial, Greenpeace e Embaixada Britânica Brasileira. Coordena a cooperação entre o Cenergia e o Instituto Francês do Petróleo.

Bruno S. L. Cunha é economista pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) com extensão na U.Porto (Universidade do Porto), em Portugal. É doutor e pesquisador visitante no Programa de Recursos Humanos 41.1. da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) dentro do Programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ. Desenvolve um modelo econômico global para investigar políticas climáticas. É autor contribuinte do AR6, o sexto relatório de avaliação do grupo de trabalho 3 do IPCC. É membro do conselho acadêmico e mentor do YCL (Youth Climate Leaders).

Roberta Oliveira é doutoranda do Programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ. Graduada e mestre em Gestão Empresarial pelo Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFRRJ. O seu principal interesse de investigação é o impacto da transição energética nas populações pobres e extremamente pobres, sua pesquisa se concentra nos modelos de financiamento do transporte público, mobilidade urbana e acessibilidade. Atua como pesquisadora na área de probreza energética com foco na dimensão do transporte do CenergiaLab (Centre for Energy and Environmental Economics). Administradora na Assessoria de Gestão da Qualidade da COPPE/UFRJ, Auditora Líder e professora do curso de MBA em Engenharia de Manutenção da Escola Politécnica da UFRJ.

Talita Borges Cruz é economista pela UFF (Universidade Federal Fluminense), mestre e doutora pelo PPE (Programa de Planejamento Energético) da COPPE/UFRJ. Atualmente, é pesquisadora do Laboratório Cenergia e pós-doutoranda do PPE, desenvolvendo projetos com foco nas desigualdades sociais e suas relações com uso de energia e mudança do clima.

Isabela Souza de Almeida é graduanda em engenharia elétrica pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e faz iniciação científica no CenergiaLab (Centre for Energy and Environmental Economics), na área de mobilidade.

Huang Ken Wei é engenheiro mecânico, mestre em Planejamento Energético pela UFRJ e atualmente é doutorando do Programa de Planejamento Energético pela COPPE/UFRJ. Sua pesquisa é focada na área de transportes, principalmente no uso de combustíveis alternativos e na aplicação para o setor marítimo. Atua como pesquisador na área de modelagem do setor de transportes de carga do CenergiaLab (Centre for Energy and Environmental Economics).

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