A renda básica universal em 10 pontos

Katarina Pitasse Fragoso, Rogério Barbosa, Marcos Paulo de Lucca-Silveira e Renata Bichir

Considerada ‘farol’ para as políticas públicas do século 21, proposta voltou ao debate público depois da pandemia do novo coronavírus. Entenda o que pesquisas dizem sobre o tema

No ano de 2020, o tema da renda básica foi bastante discutido em todo mundo. Em meio à pandemia do novo coronavírus e às políticas emergenciais de transferência de renda implementadas em vários países — como o auxílio emergencial instituído no Brasil — , ideias relacionadas à chamada renda básica universal pareceram funcionar como um farol e um ideal para as políticas públicas do século 21.

Mas em que exatamente consiste esse programa? Qual sua diferença com respeito aos programas sociais já existentes? Seria a renda básica possível ou uma utopia irrealizável? Quais seriam suas consequências positivas e negativas, se implementada? Tentamos aqui endereçar essas e diversas outras perguntas. Elaboramos uma espécie de "tutorial da renda básica” na forma de perguntas e respostas.

1. O que são programas de transferência de renda?

transferência de renda quando o Estado efetua pagamentos de quantias em dinheiro para seus cidadãos, utilizando verbas advindas da coleta de impostos ou de outras fontes.

Políticas desse tipo podem ter caráter contributivo ou não contributivo. No primeiro caso, para que uma pessoa seja beneficiária, é necessário que ela tenha feito pagamentos ao longo de um período de tempo. Esse é o caso da Previdência Social, para a qual os trabalhadores fazem contribuições regulares para então adquirirem o direito de receber uma aposentadoria, quando se retirarem do mercado de trabalho.

Políticas de transferência governamental não contributivas são aquelas que não exigem pagamentos e, em geral, estão ligadas à área de assistência social. Contudo, o pleiteante deve cumprir critérios de elegibilidade, como ter renda inferior a determinado valor ou matricular crianças e adolescentes em idade escolar na rede de ensino.

Os programas de transferência de renda assistenciais, apesar de não contributivos, podem ser focalizados — isto é, dirigidos a um grupo com determinado perfil, como os mais pobres — e condicionais — requerendo que o beneficiário frequente determinados serviços ou realize determinadas atividades.

2. O que é a renda básica universal?

A RBU (renda básica universal) é uma proposta de transferência de renda não contributiva com pagamentos monetários periódicos a todos os cidadãos, sem qualquer exigência preestabelecida. Contemporaneamente, essa ideia foi elaborada pelo filósofo belga Philippe Van Parijs. Para ele, a RBU deveria propiciar uma renda alta o suficiente para garantir uma vida sem privações.

Para ser chamado de renda básica universal, um programa deve ter necessariamente quatro características. Primeiro, deve consistir em uma transferência regular e periódica de recursos. Segundo, todos os membros de uma família devem ter o direito de receber esses recursos, incluindo jovens e crianças. Terceiro, os valores devem ser pagos a todas as pessoas de uma comunidade política (municípios, estados ou países). Diferentemente de transferências assistenciais, o programa não seria focalizado nos mais pobres. Em quarto lugar, a RBU deve ser incondicional, não demandando a adoção de comportamentos específicos (obrigatoriedade da busca por empregos) ou o uso de determinados serviços (como acompanhamento da saúde dos beneficiários e familiares ou matrícula compulsória no sistema educacional para crianças).

3. Quais as semelhanças e diferenças entre a renda básica universal e outras políticas sociais e programas de transferência de renda?

Por ser universal, a RBU se diferencia dos programas assistenciais focalizados, que têm público restrito e regras de elegibilidade. Seu caráter incondicional implica que contrapartidas de comportamentos específicos não são exigidos.

Os pagamentos monetários se diferenciam, por exemplo, de doações de cestas básicas, disponibilização de remédios ou concessão de “vales” para finalidades específicas. O fato de seus pagamentos serem mensais distingue a RBU de programas de pagamento único, como “poupanças estudantis” — pelas quais jovens recebem um pagamento único, depois de completarem uma etapa de escolarização. A regularidade a distingue também de programas temporários, como o auxílio emergencial vigente durante a crise do coronavírus.

Por fim, a RBU é também diferente da ideia de “imposto de renda negativo”. Tal proposta consiste em cobrar impostos das pessoas com rendas maiores e pagar benefícios para aquelas abaixo de determinada linha de pobreza, concedendo benefícios proporcionalmente maiores para aqueles mais pobres. Nesse modelo, há de um lado, os pagadores de impostos e, de outro, recebedores de benefícios — o que é diferente de uma renda idêntica, paga a todos, como é a renda básica universal (ver resposta à questão 2).

4. Quais são os pontos positivos da renda básica universal, segundo seus defensores?

De acordo com Philippe Van Parijs e Yannick Vanderborght, garantir um benefício básico a todos os cidadãos de uma sociedade permitiria maior liberdade individual 1, ou seja, a capacidade prática de escolher alternativas e planos de vida.

Por não ser focalizada apenas na população mais pobre, a renda básica universal também evitaria estigmas e preconceitos 2 que estão associados aos programas assistenciais, segundo o economista britânico Guy Standing. Beneficiários da assistência social focalizados são frequentemente acometidos por marcas negativas — vistos como cidadãos de segunda classe, taxados de preguiçosos, dependentes do Estado ou até mesmo incapazes de cuidar de si mesmos e suas famílias.

Para o economista Anthony Atkinson, a vantagem da RBU estaria associada à simplificação de burocracias 3, eliminando até mesmo a necessidade de o Estado averiguar as condições socioeconômicas dos indivíduos.

Já Eduardo Suplicy, um dos principais defensores da renda básica universal no Brasil, argumenta que, por ter unidade individual, não familiar, a RBU poderia ser um instrumento de empoderamento de grupos marginalizados, como mulheres e negros, pois expandiria alternativas de vida e de sustento econômico fora do ciclo de dependência de seus opressores. Segundo dados da ONU Mulheres, a renda de maridos não se transfere, necessariamente, para as esposas.

Outros estudiosos afirmam também que a RBU permitiria que trabalhadores aumentassem sua capacidade de barganha, recusando empregos com condições degradantes.

5. A renda básica universal reduziria mais a desigualdade de renda e a pobreza do que os programas assistenciais focalizados?

Como a RBU implica transferências de quantias idênticas de recursos para toda a população, estaríamos melhorando, simultaneamente, as vidas de pessoas pobres e ricas — logo, também mantendo parte das distâncias e desigualdades entre elas, em termos de seus rendimentos. Um programa de renda básica universal provoca melhorias de bem-estar, mas o faz sem necessariamente reduzir distâncias sociais ou retirar o excesso de riqueza e poder que estratos superiores costumam possuir. Nesse sentido, ele não é tão eficaz quanto programas assistenciais focalizados na redução da desigualdade, visto que esses últimos trazem melhorias para o bem-estar dos mais pobres sem afetar a renda dos mais ricos.

A RBU é também menos efetiva do que programas focalizados no combate à pobreza: se o mesmo orçamento reservado para um programa de renda universal fosse usado de modo concentrado na implementação e no pagamento de benefícios exclusivos aos mais pobres, seria possível pagar valores mais elevados aos beneficiários. Alguns defensores da RBU argumentam que, para maximizar seus efeitos distributivos, o adequado seria que o Estado fizesse a adoção simultânea de reformas tributárias de cunho progressivo, isto é, de sistemas de cobrança de impostos nos quais ricos pagam proporcionalmente mais do que os pobres. Assim, a renda básica paga ao topo seria devolvida na forma de arrecadação. No entanto, essa medida tributária não é propriamente um atributo definidor de uma RBU.

6. A renda básica universal poderia acarretar consequências negativas para a sociedade?

Apesar de seus benefícios, a RBU pode ter efeitos negativos. Um deles é a inflação. A garantia de mais rendimentos para diversos setores sociais poderia aumentar a demanda por certos itens de consumo, fazendo com que comerciantes e prestadores de serviço respondessem com aumentos de preços.

Outro efeito negativo da RBU seria a pressão sobre os gastos públicos. Para que a renda transferida seja universal, o orçamento público a ela destinado deveria ser grande. Isso pode ser fiscalmente insustentável, exigindo aumento de impostos ou cortes de gastos prioritários, como em saúde e educação. Por isso, uma alternativa para viabilizar a renda básica poderia acabar sendo a interrupção das políticas públicas nessas áreas.

Nesse caso, o beneficiário da RBU poderia usar do dinheiro que lhe foi pago pelo Estado para contratar serviços privados. Mas é possível vislumbrar que os valores pagos aos prestadores do mercado seriam, por vezes, mais caros do que a renda transferida poderia pagar. Na área de saúde, por exemplo, consultas, exames e procedimentos de média e alta complexidade poderiam custar cifras exorbitantes sem o patrocínio e o subsídio governamental. Não é desejável que a RBU rivalize com outros programas providos pelo setor público.

7. Existem experiências da renda básica universal?

A proposta da RBU nunca foi institucionalizada perfeitamente. Porém, experimentos com algumas características da renda básica universal têm sido utilizados ao redor do mundo.

Um dos casos emblemáticos é o Dividendo do Fundo Permanente do Alasca, pago a todos os residentes do estado americano, incluindo as crianças. O programa é financiado pelos ganhos do petróleo e visa a distribuir uma soma anual e incondicional de aproximadamente US$ 1.000 aos beneficiários. Pelos dados coletados até aqui, a política ajudou a aumentar o número de empregos de tempo parcial.

Outro caso é o recente experimento finlandês que durou dois anos e transferiu € 560 mensais para um grupo aleatório de 2.000 desempregados. Apesar de ter sido focalizada a um grupo específico, foi uma experiência próxima da renda básica universal, tendo em vista que não havia contrapartida de uso dos recursos e eles podiam ser combinados com outras fontes de renda. O relatório final do experimento não é conclusivo, mas aponta que, de maneira geral, a renda incondicional transferida ajudou a aumentar a autoestima e o otimismo dos participantes e também as horas de trabalho dos imigrantes e dos indivíduos com crianças.

Por fim, a renda básica de cidadania de Maricá (RJ) também se aproxima da ideia da renda básica universal. Nesse formato, a cidade transfere aos beneficiários o pagamento mensal de 130 mumbucas, moeda local, sem nenhuma contrapartida de uso. Inicialmente, a política está focada nas famílias mais pobres, mas tem o objetivo de ser expandida para outros grupos. O programa é financiado pelos royalties do petróleo e seus resultados estão sendo estudados.

8. Quanto custaria um programa de renda básica universal no Brasil?

Para responder a essa questão, talvez seja mais importante definir antes o valor do benefício a ser pago, para então investigar qual o escopo e intensidade de mudanças necessárias no orçamento público.

Um programa “barato” poderia ser custeado por meio de rearranjos no orçamento, tomando parte das verbas de políticas existentes sem que programas prioritários sofressem cortes. Um programa mais caro poderia exigir escolhas difíceis de cortes orçamentários ou arrecadação adicional de impostos, medidas que costumam ser impopulares e politicamente custosas. Qual deveria ser então o valor de uma renda para que fosse realmente “básica”?

Suponhamos que esse valor seja de R$ 500 mensais por pessoa. Como temos 212 milhões de habitantes no Brasil, isso implicaria um gasto anual de R$ 1,272 trilhão por ano! Vale dizer que, segundo o Tesouro Nacional, em 2019, o orçamento total da Seguridade Social (soma das áreas de Previdência, Saúde e Assistência) foi inferior a isso: R$ 1,054 trilhão. Uma renda básica de R$ 500 custaria cerca de dez vezes o preço do SUS — que, naquele ano, teve orçamento de R$ 122 bi — e representaria quase 20% do PIB (Produto Interno Bruto).

Esse valor certamente inviabilizaria o programa, mesmo sob a hipótese de fontes adicionais de arrecadação de impostos aliadas ao uso e à realocação de verbas existentes. A título de comparação, o programa Bolsa Família custa em torno de R$ 30 bilhões por ano e paga, em média, R$ 180 reais por família — não por pessoa —, atingindo cerca de um quarto da população brasileira.

O problema é que, possivelmente, os R$ 500 mensais de um programa hipotético de renda básica ainda seriam insuficientes para garantir “uma vida sem privações”, principalmente nas grandes cidades brasileiras.

9. Por que ainda é importante debater e levar a sério a ideia de renda básica universal?

Não há dúvidas de que a RBU seja uma grande ideia para transformar a nossa sociedade, ainda que não seja uma panaceia que elimine todas as mazelas. Alguns a enxergam como uma utopia do nosso tempo — algo impossível e irrealizável. Mas a noção de utopia para seu formulador, Thomas More, também diz respeito a um lugar desejável. Isso significa que tais “ideias utópicas” podem ser uma fonte de inspiração e norte.

A RBU inspira e inspirou políticas públicas e experiências transformadoras ao redor do mundo. A noção de renda “básica” serve frequentemente como parâmetro para julgarmos o trabalho redistributivo e a justeza dos programas de transferência de renda, fazendo-nos refletir sobre sua adequação e sobre como poderíamos melhorá-los. A discussão sobre emancipação e liberdade, que é central na literatura especializada sobre o tema, nos faz ir além dos aspectos mais imediatos e econômicos, fazendo-nos refletir sobre como atingir objetivos e parâmetros de justiça por meio das políticas públicas.

10. Por que falamos tanto da RBU recentemente?

O tema vinha ganhando importância nas discussões sobre o destino dos mercados de trabalho. Analistas receiam que, em função do avanço tecnológico em diversas ocupações, o trabalho humano poderia ser substituído pela atividade de algoritmos e máquinas. Milhares de pessoas desempregadas poderiam não encontrar um reposicionamento no mercado, perdendo seus salários. Nesse contexto imaginado e distópico de um “futuro sem trabalho”, a RBU poderia garantir o sustento para as famílias.

No ano de 2020, porém, o advento dos programas emergenciais de transferência de renda para combate aos efeitos socioeconômicos da pandemia de covid-19 acarretou interesse renovado no assunto. Programas como o auxílio emergencial foram bem-sucedidos em conter o avanço da desigualdade e da pobreza, apesar das perdas de vidas e das economias em recessão no último ano. O receio de que a crise se prolongue por muito tempo reacendeu as discussões sobre a necessidade de transferências estatais para garantir patamares mínimos ou básicos de vida para as populações, enquanto a recuperação econômica não ocorre.

Katarina Pitasse Fragoso é doutora em filosofia pela UCLouvain (Université Catholique de Louvain) e realiza pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. É pesquisadora do CEM (Centro de Estudos da Metrópole) e do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Com financiamento da Fapesp, desenvolve pesquisa sobre desigualdades relacionais nas cidades, política participativa e integração social de grupos oprimidos.

Rogério Jerônimo Barbosa é doutor em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo) e professor do IESP (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É pesquisador associado do CEM (Centro de Estudos da Metrópole).

Marcos Paulo de Lucca-Silveira é doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da EESP-FGV (Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas). É pesquisador da FJLES (Fundação José Luiz Egydio Setúbal) e pesquisador associado do CEM (Centro de Estudos da Metrópole).

Renata Mirandola Bichir é professora doutora da EACH/USP no curso de Gestão de Políticas Públicas e diretora científica do CEM. Atua na pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas da EACH e no Departamento de Ciência Política da USP. É graduada em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (2002), mestre em ciência política também pela Universidade de São Paulo (2006) e doutora em ciência política pelo IESP-UERJ (2011). Entre 2011 e 2013 foi coordenadora-geral de resultados e impacto do Departamento de Avaliação da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SAGI/MDS). Seus temas de pesquisa incluem análise de políticas públicas, pobreza, assistência social, análise de redes sociais e segregação residencial.

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