
Medidas implementadas para desestimular o consumo de alimentos não saudáveis são exemplos para iniciativas de combate ao vício digital
Hoje tornou-se difícil imaginar as caixas de cigarros sem as conhecidas (e incômodas) advertências que aparecem nas laterais e no verso das embalagens desses produtos no Brasil . Já sabemos que a obrigatoriedade das advertências sanitárias, contendo elementos gráficos que nos fazem ver os danos à saúde causados por cigarros, assim como a padronização das embalagens têm se mostrado eficazes para desincentivar o uso de cigarros. Seja para afastar não fumantes, seja para manter os fumantes alertas e conscientes dos perigos à saúde quanto ao vício em nicotina, seja para motivá-los a abandonar o consumo de tabaco são medidas pioneiras no Brasil e adotadas mundialmente. De acordo com dados da Anvisa, 67% dos fumantes já pensaram em deixar de fumar por conta das advertências .
Medidas semelhantes vêm sendo implementadas para desestimular o consumo de alimentos não saudáveis, combater os índices de doenças crônicas não transmissíveis e promover escolhas mais saudáveis dos consumidores. A rotulagem nutricional mandatória foi introduzida no Brasil pela Anvisa em 2001 e, desde então, há esforços voltados ao seu aperfeiçoamento. O modelo mais longevo no Brasil, que exigia tabelas de valores de referência para porções de alimentos, era percebido como de difícil compreensão pelos consumidores. Após um longo processo regulatório, a rotulagem frontal, já presente em outros países da América Latina, foi adotada no Brasil na forma do “modelo lupa“, com alertas do tipo “alto em” açúcar adicionado, gordura saturada ou sódio. Apesar de algumas fragilidades do modelo lupa, o emprego de elementos visuais na frente da embalagem, facilmente percebidos pelos consumidores, ajuda significativamente na compreensão da qualidade nutricional dos produtos e na tomada de melhores decisões.
Agora, uma pergunta: você já imaginou se reguladores começassem a utilizar a mesma estratégia para alertar usuários sobre danos à saúde causados pelo uso de redes sociais? Essa é a proposta advogada por Vivek Murthy, Surgeon General dos Estados Unidos (a autoridade pública da saúde no país). Em um artigo de opinião recente publicado pelo New York Times, o Dr. Murthy defendeu a adoção de advertências em redes sociais para alertar os usuários sobre os riscos à saúde mental de adolescentes associados ao uso das plataformas, na esteira de outras iniciativas sobre o tema, bem como a partir de iniciativas legislativas como o Kids Online Safety Act (KOSA), nos EUA. Adolescentes que gastam mais de três horas por dia em redes sociais têm duas vezes mais chances de revelar sintomas de ansiedade e depressão, afirma Murthy.
No ano passado, o Surgeon General publicou um “advisory”, declaração pública que tematiza e discute questões urgentes de saúde pública, chamando a atenção para os possíveis danos sobre o “consumo” de mídias sociais. O documento traz o estado da arte das pesquisas sobre uso problemático da internet e, a partir disso, faz recomendações para policymakers, empresas de tecnologia, cuidadores, crianças e adolescentes e pesquisadores.
O caminho que se revela pela frente passa, em termos de desafios de construção regulatória, pelo esforço de transpor para o ambiente digital as advertências e rótulos estáticos do mundo analógico
O interesse pelo uso de “rótulos digitais” vem também aos poucos crescendo na academia. Alguns estudos convergem com a proposta do Dr. Murthy e sugerem a replicação do uso de advertências sanitárias usadas nos campos do tabaco e alimentos ultraprocessados para combater o vício digital (Ali et al., 2015; Berthon, Pitt & Campbell, 2019). Outros trabalhos consideram a expansão do uso de rótulos digitais para avisar usuários sobre a edição digital de imagem de rostos e corpos (Giorgianni, 2020), para classificar sistemas de recomendação (Belli &Wisniak, 2023), destacar graus de proteção à
privacidade de um determinado produto ou serviço digital (Mansted, 2017) e identificar conteúdos patrocinados (Pillai, 2024). Há um espaço importante para criatividade no desenvolvimento de novas ferramentas regulatórias baseadas em rótulos digitais.
De todo modo, fato é que a experiência da regulação do design de maços de cigarros e de embalagens de alimentos ultraprocessados mostra que, mais do que apenas divulgar informações sobre os riscos à saúde, a formada mensagem importa. Tanto é que, em ambos os casos, a indústria se mobilizou para desacelerar e frear (para ganhar tempo e lucrar) o avanço da regulação de aspectos visuais referentes a embalagens e a publicidade, ciente da capacidade do design de persuadir e dissuadir consumidores . Por isso, é bastante razoável supor que a regulação de plataformas digitais, ainda incipiente, muito se beneficia de um benchmarking de melhores práticas oriundo das indústrias offline, práticas essas guiadas por uma análise criteriosa e crítica de princípios de design (Goodman, Kornbluh, 2021).
Há importantes lições e aprendizados, inclusive, originários das limitações impostas às indústrias que já têm de adotar rótulos obrigatórios. Vide, por exemplo, as alterações periódicas das imagens no verso das embalagens de cigarro, que buscam evitar que os consumidores se acostumem com os impactos visuais e tornem-se, com o tempo, insensíveis aos alertas. Também já se sabe como fabricantes de produtos ultraprocessados tentam burlar a rotulagem mandatória ao posicionar, nas embalagens, os alertas de forma a serem removidos (rasgados ou cortados) pelos consumidores no momento de abertura da embalagem.
Aos aprendizados regulatórios intersetoriais, somam-se precedentes importantes nas pesquisas e instrumentos no campo nascente das ações voltadas a disciplinar o comportamento de plataformas digitais, sobretudo as big techs. Hoje, há um consenso na literatura de que instrumentos como políticas de privacidade e termos de uso, com seus longos textos (e letras miúdas), assim como o uso de jargão técnico indecifrável ao leitor leigo, são insuficientes para comunicar eficazmente aos usuários como seus dados são tratados. Ou seja, nota-se que se consolida um questionamento sobre o modo como as informações são veiculadas aos usuários, com um debate sobre se tais instrumentos poderiam vir acompanhados de elementos de alerta visual (Waldman, 2018). Ainda, o desenvolvimento do conceito de deceptive patterns, que traduz o uso de truques de design utilizados por plataformas digitais para empurrar usuários a tomar decisões opostas aos seus interesses, mostra sensibilidade e conscientização crescentes do papel que a arquitetura visual e comportamental desempenha na modulação de hábitos dos usuários e na regulação da indústria. Por fim, especificamente no caso de crianças e adolescentes, já há ainda regulamentações inovadoras que estabelecem parâmetros para o design de produtos e serviços que afetam jovens, como o Children’s Code, do Reino Unido, e o “Age-Appropriate Design Code Act”, da Califórnia.
A proposta de Vivek Murthy suscita um importante debate sobre novas ferramentas regulatórias no campo digital, levando-nos a olhar com cuidado, mas com ganhos, para experiências exitosas em indústrias offline, abrindo um espaço para o desenvolvimento de uma sofisticada agenda regulatória. Ainda que a proposta seja direcionada à proteção de crianças e adolescentes no ambiente online, a rotulagem digital pode ser utilizada para tornar a internet mais saudável para todos, sem restrições de idade. Devido à concentração de poder econômico e às assimetrias de informação das plataformas digitais, adultos também frequentemente se encontram em posição de vulnerabilidade.
O caminho que se revela pela frente passa, em termos de desafios de construção regulatória, pelo esforço de transpor para o ambiente digital as advertências e rótulos estáticos do mundo analógico. Não se trata de uma tarefa simples (e não está isenta de críticas): a rotulagem digital, para ser efetiva, precisa ser sofisticada o suficiente para se fazer perceptível em diversos dispositivos eletrônicos (smartphones, computadores, tablets, etc), bem como para conseguir veicular mensagens de alerta compreensíveis e persuasivas o suficiente para dissuadir seu uso excessivo por crianças e adolescentes (vale frisar, no entanto: a rotulagem digital pode ser utilizada para tornar a internet mais saudável para todos, sem restrições de idade). Quando isso acontecer, veremos dizeres com “cuidado, alto teor de captura de atenção”, “altos riscos à saúde mental”, “altos riscos de estímulos viciantes” e outras mensagens semelhantes nas telas. Ainda que isso não seja suficiente para enfrentar o problema do consumo excessivo da internet, pode ser um passo importante para uma imprescindível reflexão que precisamos fazer em nome da saúde pública.
Vitória Oliveira é doutoranda em direito econômico pela Universidade de São Paulo, graduada pela mesma instituição, é pesquisadora do Grupo Direito e Políticas Públicas e pesquisadora visitante na Dickson Poon School of Law (King’s College London), com apoio da CAPES. Foi bolsista no Programa de Iniciação Científica da USP, pesquisadora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e assistente de pesquisa da REED (Rede de Pesquisa Empírica em Direito).
Diogo R. Coutinho é professor de direito econômico da USP e pesquisador do Grupo Direito e Políticas Públicas. É mestre em regulação pela LSE, doutor em direito e livre-docente pela USP. É membro do Academic Advisory Group for the Global Center of Legal Innovation on Food Environments, do O’Neill Institute for National and Global Health Law e do Conselho Diretor do CEPEDISA (Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP).
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