Os lugares de fala representados na mídia não só servem à expressão de diferentes pontos de vista, mas também moldam visões de mundo, afetam a capacidade de reflexão crítica e influenciam a formação de preferências e gostos. A partir dessa perspectiva, desenhamos uma pesquisa que se propôs a analisar os perfis dos autores de reportagens e textos de opinião em três dos principais jornais impressos do país: Folha de São Paulo (Folha), O Estado de São Paulo (Estadão) e O Globo.
A aguda subrepresentação de autores negros e negras produz o silenciamento do grupo majoritário da nossa população
Esse estudo ampliou o trabalho anterior do Gemaa, que tentou responder à pergunta “quem produz opinião na grande mídia?” (Candido e Feres Júnior, 2016; Candido e Vieira, 2020), estendendo a análise a todas as páginas e seções dos jornais, a fim de observar não apenas a produção de opinião, mas também a de narrativas acerca dos eventos cotidianos. A pesquisa foi motivada por uma provocação feita pela Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação, uma associação dedicada a combater a profunda escassez de oportunidades no mercado de comunicação para profissionais negros.
Analisamos um total de 4.331 matérias e colunas escritas por 1.190 pessoas diferentes no ano de 2021. Esse conteúdo se distribui da seguinte forma entre os três jornais analisados:
Ao longo da análise, nos orientamos por uma questão central: “qual o perfil racial e de gênero das pessoas que escrevem nos principais jornais em circulação no país?” A partir disso, nos interessamos em entender qual o espaço que essas pessoas ocupam nesses periódicos, ou seja, quais as temáticas cobertas, os cadernos em que aparecem, se assinam textos opinativos e editoriais, e se ocupam cargos de decisão, como edição e direção.
Desigualdades raciais e de gênero
Quando observamos a distribuição de gênero dos 3 jornais, identificamos um perfil semelhante, no qual as mulheres representam cerca de um terço da amostra. Vale ressaltar que, entre as quase 1.200 pessoas analisadas, apenas 1 mulher trans foi identificada, sendo que se tratava de uma convidada pontual.
A desigualdade racial é a mais profunda. A distribuição racial dos colaboradores dos 3 jornais analisados é similar: em todos, os brancos são maioria entre os produtores de conteúdo, representando, na média, 84% do total. Se compararmos essas grandezas às proporções desses grupos raciais na população brasileira, concluímos que a representação dos brancos é mais de duas vezes a sua proporção populacional, enquanto a dos pretos é de 0,65 e dos pardos de 0,13, o que é aproximadamente um oitavo de sua participação na população brasileira.
Cobertura temática
Quando a frequência de colaboração é dividida em faixas, para avaliarmos a incidência de fatores raciais e de gênero na periodicidade da autoria, notamos que as mulheres brancas preponderam entre os colaboradores mais frequentes (acima de 16, de 11 a 15 e de 6 a 10 textos ao longo dos 180 dias estudados), enquanto pessoas pretas, sejam homens ou mulheres, encontram-se exclusivamente na faixa de mais baixa frequência (de 1 a 5 textos no período). Mais uma dimensão da desigualdade racial nessa atividade. Ou seja, autores(as) pretos(as) não fazem parte da elite de jornalistas que aparecem com frequência nas páginas dos jornais. Esses vieses apontam para a necessidade de medidas que promovam a inclusão e diversidade nos jornais e na mídia em geral, para garantir uma representatividade mais equilibrada e justa de todas as vozes e perspectivas na sociedade brasileira.
Olhando para a distribuição entre os diferentes temas e assuntos cobertos nos jornais, vemos que a maioria dos autores que escrevem sobre política são homens, sendo que os homens assinaram 63% das publicações, enquanto as mulheres só são responsáveis por 37% das autorias no assunto. Também há uma grande disparidade de gênero nas autorias de esportes, com apenas 17% de autorias femininas. As mulheres negras são as que menos assinam reportagens e notícias sobre o tema, com apenas 3% das matérias. Em contrapartida, a maior proporção de autorias de mulheres pretas e pardas é apontada em assuntos relacionados a causas/movimentos sociais, indicando que esse é o maior espaço de interlocução que o grupo ocupa nos jornais brasileiros.
Na autoria dos textos de opinião, os homens brancos ampliam sua vantagem em relação às mulheres brancas para 2,2:1. Já as mulheres brancas registram uma frequência de publicações desses textos em torno de 10 vezes mais alta que as frequências dos grupos não brancos, a despeito de seu gênero. Nossa pesquisa não conseguiu identificar uma só pessoa transgênero na autoria de textos de opinião na amostra.
Este estudo, que já se tornou periódico na agenda do Gemaa, sinaliza primeiramente um problema de justiça, que é: a falta de oportunidades profissionais para jornalistas negras e negros, como sinalizado pela Rede de Jornalistas Pretos. Mas há também um problema que afeta profundamente a democracia brasileira, naquilo que é o cerne de seu funcionamento: o processo de formação da opinião pública. A aguda subrepresentação de autores negros e negras produz o silenciamento do grupo majoritário da nossa população, roubando esse processo de formação de opinião de perspectivas fundamentais para a constituição de uma esfera pública aberta, plural e vibrante, e contribuindo para a continuação da exclusão social e política que tem sido a marca histórica de nossa sociedade.