A Meta 1 do Plano Nacional de Educação (PNE) visa atender, pelo menos, 50% das crianças de até 3 anos pela rede de creches no Brasil até 2024, além de universalizar o atendimento a crianças de 4 e 5 anos. Para isso, são detalhadas 17 estratégias, como considerar um padrão nacional de qualidade, sem deixar de lado as especificidades locais (estratégia 1), garantir que a expansão não seja concentrada entre crianças mais abastadas, garantindo que a diferença entre a taxa de atendimento das crianças do quinto mais rico para o quinto mais pobre não ultrapasse 10% (estratégia 2), ou ainda, redimensionar a oferta para que populações do campo, de comunidades indígenas e quilombolas também sejam atendidas (estratégia 10). Para isso, o Censo Escolar da Educação Básica é a principal ferramenta disponível para planejamento, gestão e monitoramento das metas, uma vez que esta é a fonte com maior quantidade e detalhamento de dados do sistema educacional brasileiro. Nela, são encontradas informações sobre estudantes, docentes, profissionais, turmas e escolas de todo o país de maneira detalhada.
Se, por um lado, o Censo da Educação Básica é uma fonte detalhada, por outro, ela apresenta uma lacuna importante para o acompanhamento da meta e, principalmente, para a análise das desigualdades raciais: o alto percentual de não-respostas sobre raça/cor de estudantes e profissionais. Nas creches, 30% das crianças não têm a raça declarada, enquanto nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, esse percentual é de 24% e 25%, respectivamente. Sendo assim, esse texto se dedica a compreender os percentuais de não-declaração, os padrões de preenchimento, e sugerir formas de aprimorar a qualidade do dado, bem como aumentar a sua cobertura – tanto no sistema de creches, quanto na educação básica como um todo.
O histórico da coleta do dado
Em 2004, a Portaria n. 156 orientou as escolas a incluírem a variável raça/cor nas fichas de matrículas para serem preenchidas na edição do ano seguinte do Censo da Educação Básica. Segundo a orientação, as categorias deveriam seguir aquelas utilizadas pelo IBGE, ou seja, indígena, preta, parda, amarela e branca, e a declaração deveria ser obtida por documento comprobatório, declaração do responsável ou do próprio estudante, caso este tivesse 16 anos ou mais.
Onze anos depois, em 2015, o Inep retomou a atenção sobre o tema, visando sensibilizar gestores escolares sobre a importância do preenchimento da variável raça/ cor. Isto porque no ano anterior, 33% do corpo discente, entre todas as etapas escolares, não tinha sua raça declarada no Censo Escolar. Segundo documento do próprio Inep, a trajetória foi positiva desde 2007, quando a não-declaração atingia 60% de todos os casos coletados. Neste mesmo ano, as maiores taxas de não-declaração se encontravam entre as crianças de 0 a 3, com 69% de não-declaração, e de 6 a 10, com 75%.
Com acesso aos dados da edição de 2020, observa-se que esse esforço, feito em 2014, surtiu efeitos, já que a declaração aumentou desde então. Se em 2014, 31% das crianças entre 0 e 3 anos tinham sua raça declarada, em 2020 esse percentual chegou a 70%. Por um lado, a trajetória da declaração é positiva e demonstra melhora ano após ano. Por outro lado, questiona-se se há um padrão de não-respostas à identificação racial, isto é, se algum grupo é mais provável de não responder à pergunta sobre raça. Os dados indicam algum caminho para melhorar a cobertura da informação racial no Censo Escolar? Nesse sentido, nos debruçamos sobre informações de estudantes de 0 a 3 anos no Censo Escolar de 2020 para verificar quais características individuais, locais e escolares estão associadas à falta de declaração, com o objetivo de contribuir no acesso a dados raciais mais completos em torno da educação infantil brasileira.
Quais as características dos dados raciais do Censo Escolar?
Para compreender as não-declarações da variável racial, três níveis de características foram levantados: individuais, regionais e institucionais. Listamos, abaixo, três perguntas que nos guiam acerca das características dos dados raciais faltantes entre as crianças de 0 a 3 anos no Censo Escolar de 2020.
Há um perfil mais recorrente entre as crianças sem declaração racial?
Em uma análise descritiva, observa-se que as características individuais idade e gênero não indicam padrões que expliquem os dados faltantes para raça. Por idade, as crianças com 1 ano ou menos têm 24% de respostas faltantes, enquanto o maior percentual é encontrado entre aquelas de 3 anos, com 31%. O mesmo ocorre por gênero, onde o percentual de não-declarações é idêntico, ambos com 30%.
O não-preenchimento da variável raça é mais recorrente em alguns estados ou tipo de administração da creche?
Regionalmente, verifica-se um percentual mais alto de não-declaração nos estados do Nordeste (40%) e do Centro-Oeste (35%). Contudo, há heterogeneidades mesmo entre estados da mesma região. Os três estados com mais dados faltantes são Mato Grosso (55%), Pará (51%) e Maranhão (48%), ao contrário dos estados do Espírito Santo e Mato Grosso do Sul (ambos com 12%) e Tocantins (16%), que têm maiores percentuais de preenchimento da variável.
Entre as características institucionais, 45% das matrículas em escolas administradas pela União não têm raça declarada, enquanto esse percentual é de 24% nas creches estaduais. Contudo, esses dois tipos de dependência administrativa representam apenas 0,1% do total de atendimentos em creches no país. No caso das conveniadas, seu resultado é um pouco melhor que a média, sendo que a taxa de não-resposta é de 25% em comparação aos 30% nas creches municipais.
O quanto das não-respostas ou do mau preenchimento pode ser atribuído às escolas?
A escola tem um papel importante na administração dos dados coletados no Censo Escolar, e os dados reforçam esse papel. Do total de 70.894 creches, 7.551 delas não tinha nenhum estudante com a raça declarada, o que representa 11% das creches do Brasil. Porém, apenas 3% dos estudantes estão nessas escolas, o que sinaliza que, em média, isso ocorre em escolas menores. Outro dado que joga luz sobre o papel das creches é o fato de que em 10.204 delas, todos os registros estão identificados em categorias válidas, mas todos na mesma categoria racial – o que representa 14% do total de instituições destinadas à educação de crianças entre 0 e 3 anos.
Qual o caminho para obter uma maior cobertura dos dados raciais no Censo Escolar?
A leitura dos dados faz restar questionamentos que apenas uma leitura qualitativa pode endereçar. Afinal, por que parte dos estudantes não têm sua raça declarada? Como é feita a declaração e o preenchimento dos dados? O que famílias e gestores entendem do quesito que é inserido nas fichas de matrícula e no questionário do Censo Escolar?
Ao longo da investigação de cunho qualitativo conduzida entre escolas da educação infantil da rede pública e privada de São Luís do Maranhão, algumas pistas vêm surgindo. Em conversas com as equipes atuantes nos equipamentos, escutamos sobre a hesitação das famílias ao responderem sobre a classificação racial das crianças, mas também sobre o constrangimento das próprias equipes em perguntar e transpor o que é dito para as categorias disponíveis nos sistemas burocráticos.
Nesse sentido, nota-se tanto uma dificuldade em explicar o porquê da importância de haver um preenchimento consistente desses dados, quanto uma falta de familiaridade com a discussão sobre (auto)classificação racial, tanto em termos mais pessoais e subjetivos quanto em termos mais sociais e coletivos. Os entraves dessas dinâmicas de declaração e preenchimento impactam diretamente a produção dos dados étnico-raciais referentes ao sistema escolar. Nesse âmbito da pesquisa, muito ainda precisa ser aprofundado, porém ficamos com algumas sugestões que apontam para a necessidade de um novo investimento de formação nesse debate.
Introduzir incentivos e informações padronizadas a respeito dos instrumentos de coleta nas escolas pode acarretar em melhora significativa no levantamento das informações raciais. No entanto, o aperfeiçoamento de instrumentos técnicos não será suficiente se não for acompanhado de um investimento na compreensão de sua relevância junto à comunidade escolar, incluindo fundamentalmente familiares e estudantes.