
Ampliar a compreensão para além das cotas aplicadas às instituições de ensino nos leva ao histórico de ações afirmativas pré-cotas e, recuperá-lo é fundamental para a melhor compreensão do capital político acumulado, que nos permitirão celebrar, na verdade, quase quatro décadas de ação afirmativa
TEMAS
PARCEIROS
NEWSLETTER
Em 2022, foram celebrados 10 anos da promulgação da Lei de Cotas 12.711/12 que, ao definir as bases para adoção de ação afirmativa no ensino superior federal, permitiu a ampliação do acesso para estudantes pobres, negros e indígenas . E, ainda antes, em 2000, Uerj e Uneb assumiram protagonismo ao estabelecerem percentual para a entrada de estudantes carentes e negros, em seus cursos de graduação.
Diante destes eventos, defensores das políticas de inclusão celebram 20 anos de ações afirmativas. Trata-se de uma imprecisão que decorre da automática tradução, feita no Brasil, de ações afirmativas como cotas, sem maiores complexificações; reforçada pela inquestionável concentração das medidas com foco no ensino superior, sobretudo o público.
Ações afirmativas são medidas direcionadas à valorização de grupos historicamente excluídos a partir de sua condição de minoria, e podem ser desenvolvidas como cotas, reservas de vagas, seleção e ou contratação preferencial, entre outras. Neste sentido, toda cota é uma ação afirmativa; mas o inverso não é real.
Ampliar a compreensão para além das cotas aplicadas às instituições de ensino nos leva ao histórico de ações afirmativas pré-cotas e, recuperá-lo é fundamental para a melhor compreensão do capital político acumulado, que nos permitirão celebrar, na verdade, quase quatro décadas de ação afirmativa.
No Brasil, ações afirmativas são diretamente resultantes da mudança de repertório e estratégias de ação dos movimentos negros que, ao se reorganizarem, no final da década de 1970, encontraram na proximidade com a política institucional seu principal campo de atuação, seja na inserção em partidos progressistas, seja na pressão política exercida através de denúncias, manifestações e reinvindicações.
No Brasil, ações afirmativas são diretamente resultantes da mudança de repertório e estratégias de ação dos movimentos negros que, ao se reorganizarem, no final da década de 1970, encontraram na proximidade com a política institucional seu principal campo de atuação
Assim, as primeiras ações afirmativas decorrem do capital político produzido por setores ativistas negros que obtiveram êxito ao politizar suas reivindicações, naquele momento, direcionadas para o campo da memória e valorização da cultura negra e conseguiram transportar os debates e as ações prévias ao Centenário da Abolição (1988) para as pautas de elaboração da Constituição Federal (1988), como observado nas patrimonializações do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho (1984) espaço de religião de matriz africana mais antigo do Brasil e da Serra da Barriga (1986) sede do Quilombo de Palmares; assim como na elaboração do Programa Nacional do Centenário da Abolição da Escravatura (1987) que veio a organizar as atividades de promoção dos povos e cultura negra, realizadas ao longo de 1988, por ocasião do Centenário; na criação da Fundação Cultural Palmares (1988) como a primeira instituição pública fundada exclusivamente para promover, valorizar e preservar “valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”; e, no Reconhecimento do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades quilombolas pela Constituição Federal (1988), apresentado no Artigo 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias.
O movimento negro foi igualmente bem-sucedido em assumir o protagonismo na elaboração de iniciativas de ações afirmativas, como nos casos dos pré-vestibulares comunitários direcionados para negros, como o Curso pré-vestibular do Instituto Cultural Beneficente Steve Biko (1992).
Contudo, foi o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) (1993) que, ao vincular desigualdades de renda e racial como definidoras de seu público-alvo, impulsionou os debates sobre adoção de políticas de ações afirmativas na educação, desenvolvidos nas décadas seguintes.
Os anos 1990s viram um aquecimento nas manifestações pela adoção de políticas por parte do Estado, cujo maior impacto foi percebido na elaboração do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) (1995), o primeiro documento oficial do Governo Brasileiro a assumir oficialmente compromisso com sua implementação. E, embora as propostas não tenham sido efetivadas, sua relevância histórica está em apresentar medidas inovadoras como, por exemplo, oPrograma de Combate à Anemia Falciforme.
Os primeiros esforços mais contundentes do governo federal para a formulação de ações afirmativas foi completado com o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI) (1995) criado com a finalidade articular, junto aos ministérios, “políticas para a valorização da População Negra”; e o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTEDEO) (1996), cuja a missão seria elaborar um plano de ações para a eliminação da discriminação no mercado de trabalho.
Somaram-se a esses esforços, a construção do Programa Nacional do Livro Didático (1996) que levou à revisão do conteúdo dos livros didáticos adotados no Brasil, com subsequente retirada de “erros conceituais, indução a erros, desatualização, preconceito ou discriminação de qualquer tipo”.
Os anos 1990 foram um grande balão de ensaio, com iniciativas variadas produzidas até mesmo no campo do mercado, como visto no caso da Revista Raça Brasil (1996), que inspirada nas revistas negras americanas, foi exclusivamente voltada para pessoas negras, com especial atenção à elementos de consumo, beleza e comportamento; e no Projeto Geração 21 (1999) da Fundação BankBoston que, em parceria com o Geledés e apoio da Fundação Palmares , investiu na complementação da educação de 21 jovens negros de baixa renda, em São Paulo.
Em retrospectiva, é correto afirmar que as políticas de cotas, desenvolvidas nos anos seguintes, são consequência da expertise política do ativismo negro e suas ações do período pré-cotas. Realizar este exercício é fundamental tanto para que se recupere as longas quatro décadas de ações afirmativas no Brasil, como também para constatar que uma agenda de lutas por ações afirmativas deve ir além da aplicação de cotas no ensino superior.
Andréa Lopes da Costa é socióloga, professora na Escola de Ciência Política da Unirio. Professora nos Programas de Pós-graduação em Ciência Política (PPGCP) e Memória Social (PPGMS). Coordenadora do Grupo PET-Ação Afirmativa. Pesquisa os temas: Ação Afirmativa, Relações Raciais, Feminismo Negro e Ensino superior.
Este texto faz parte da série de publicações no Nexo Políticas Públicas do “Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas”, coordenado pelo Núcleo Afro do Cebrap e pelo Gemaa do Iesp-Uerj.
Os artigos publicados na seção Opinião do Nexo Políticas Públicas não representam as ideias ou opiniões do Nexo e são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
Navegue por Temas