Heranças da plantação e o trabalho escravo no Brasil contemporâneo

Anelise Gutterres
Embora os casos de trabalho escravo sejam denunciados desde 1971, foi em 1995 que o governo brasileiro criou mecanismos para monitorar e coibir. Eventos recentes mostram a permanência e gravidade do problema

A existência de trabalho análogo à escravidão no Brasil retornou recentemente ao debate público após mais de 200 homens serem resgatados de um alojamento em Bento Gonçalves/RS, onde trabalhavam na colheita da uva. No entanto, a relação de setores e cadeias produtivas brasileiras com o trabalho escravo é, infelizmente, muito anterior a 2023. Recorrendo a uma cronologia mais longa localizamos essa permanência como uma das heranças da lógica da plantação no Brasil que remetem ao capitalismo colonial e imperial e à reprodução sistêmica de práticas racistas na lógica territorial, agrária e na organização política e econômica do país.

Isolados, endividados pela compra dos equipamentos de trabalho e custos de deslocamento, os trabalhadores resgatados chegam até esses locais através de aliciadores. Distantes de seu domicílio, eles são atraídos por condições supostamente vantajosas de trabalho, muitas vezes, baseadas na pujança sazonal de diferentes cultivos agrícolas. Alojamentos precários, escassez de alimentos e água, jornadas de trabalho extenuantes, vigilância armada, retenção de documentos, punições, ameaças, falta de pagamento dos salários são algumas das variáveis reunidas no Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas as de Escravo elaborado por auditores fiscais do trabalho após anos de experiências em ações fiscais no território brasileiro.

Os mecanismos e instrumentos de ajuste de conduta, controle institucional e social são conquistas da população e ressaltam a importância da legislação, em especial, dos direitos trabalhistas e dos benefícios sociais, no combate ao trabalho análogo à escravidão

Embora os casos de trabalho escravo sejam denunciados desde 1971, foi em 1995 que o governo brasileiro criou mecanismos para monitorar e coibir. De 1996 até 2022 foram 57.772 registros de pessoas resgatadas em todo território nacional. Desses trabalhadores, 23% foram resgatados no Pará, onde a ocorrência do trabalho escravo é agravada pela grilagem de terras, extrativismo industrial e ilegal. O segundo estado com mais resgates foi Minas Gerais que teve 6.410 pessoas resgatadas, seguido do Mato Grosso com 6.139 pessoas resgatadas no período. Antes de 1996, no entanto, os números eram bem mais elevados. De acordo com os dados reunidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-RJ) e pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAG-RJ) entre 1991 e 1992 foram 8 mil casos no Mato Grosso do Sul e 3 mil casos no Rio Grande do Sul. Em 1993 as entidades apontam para 200 mil casos de trabalho análogo à escravidão no estado do Rio de Janeiro. Como apontado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a informalidade no campo aumenta muito os índices de trabalho infantil e o trabalho análogo à escravidão.

Segundo os relatórios da Repórter Brasil, a pecuária, o carvão, as lavouras e o extrativismo estão entre as cadeias produtivas que mais utilizam trabalho escravo. A cana de açúcar, o café, a soja, a pecuária e o extrativismo - que integram a lista atual - são historicamente os responsáveis pela devastação de pelo menos três biomas nativos: Mata Atlântica, Cerrado e Amazônia. No caso do Sul Fluminense e Vale do Paraíba Paulista, região que venho pesquisando há alguns anos, é nas ruínas das plantações de café que a criação de gado de leite se estabeleceu como alternativa econômica já no final do século 19 quando a pauperização do solo das “zonas velhas” já era uma realidade documentada. Considerada com baixo custo de manutenção em relação ao sistema de plantação cafeeira, a produção leiteira foi substituindo o café nas fazendas, transformando a paisagem e o microclima da região com erosão, voçorocas, rios assoreados, chuvas torrenciais e extensos períodos de seca.

Divulgado pelo Ministério do Trabalho desde 2016, o Cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, conhecido como “lista suja”, reúne os empregadores auditados por um período de dois anos. Analisando a última versão do documento, atualizado em 9 de março de 2023, vemos que 18 empregadores rurais autuados têm registro de CNAE em “cultivo de café”, o cultivo com maior ocorrência da lista. De acordo com o Radar SIT, no entanto, o café nunca esteve fora dela.

As empresas que compram a matéria prima ou o produto acabado fruto do trabalho análogo à escravidão costumam alegar que não sabiam sobre a existência dessa prática entre os seus fornecedores e colaboradores. No caso da cafeicultura há, inclusive, casos de produtores autuados que receberam prêmios de qualidade e selos de certificação internacional. Além das isenções, o caso recente no Rio Grande do Sul chamou atenção pelo posicionamento dos empresários diante do ocorrido. O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG) usa “a carência de mão de obra” para argumentar sobre o uso de trabalho escravo na colheita das uvas. Os empresários retomam, portanto, um dos traços da dinâmica da plantação cafeeira no século 19, a narrativa da “crise do braço”.

Recuando cronologicamente, podemos ver como a “falta de braço” é um tema crescente nos debates e pressões de grandes fazendeiros e produtores de café após 1831. Reforçado após as leis abolicionistas (1850, 1871, 1885 e 1888) ele evidencia a relação direta da escravidão com o café em sistema de plantação e entre ele e o crescimento econômico do país neste período. A “crise do braço” também foi motor para o tráfico ilegal de africanos escravizados e usada como argumento para políticas de imigração no Sudeste a fim de compor o plantel de trabalhadores para o serviço na lavoura de café.

Em sua nota, os empresários de Bento Gonçalves ainda reclamam de “uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista”. Diante da “carência da mão de obra”, o excesso de assistência social - em sua marca racial e de gênero - é apontado como causa da falta, nunca as condições pouco atrativas ou precárias dos postos de trabalho oferecidos.

No Brasil, tal como enfatizado ao longo do texto, a reincidência do trabalho análogo à escravidão remarca a herança da plantação enquanto base do crescimento econômico nacional e como lócus contínuo da exploração do trabalho e da violência racial

Os mecanismos e instrumentos de ajuste de conduta, controle institucional e social são conquistas da população e ressaltam a importância da legislação, em especial, dos direitos trabalhistas e dos benefícios sociais, no combate ao trabalho análogo à escravidão. Como buscamos descrever, no entanto, as lógicas da plantação e das monoculturas evocam partes indissociáveis de seu funcionamento: a herança escravista e a devastação ambiental. Ao olharmos para a exploração nessa dupla chave, urge pensarmos nos limites econômicos, políticos, sociais e ambientais dessas lógicas produtivas e agirmos para transformá-las.

A plantação é um marco na história humana e natural em escala global. No Brasil, tal como enfatizado ao longo do texto, a reincidência do trabalho análogo à escravidão remarca a herança da plantação enquanto base do crescimento econômico nacional e como lócus contínuo da exploração do trabalho e da violência racial. Uma herança que aponta para o monopólio da terra e dos recursos, responsável por engendrar - ao lado da pecuária e do extrativismo - uma geografia regional de fluxos e deslocamentos racializados no interior do país. Há, portanto, uma permanência sistêmica e estruturante na dinâmica econômica e social desses setores que só poderá ser transformada com a ruptura dessa lógica, ou seja, com a diminuição da desigualdade social, com reformas agrárias e urbanas, democratização do acesso à terra e com a diversificação de modos e consórcios de cultivo.

Anelise Gutterres é pesquisadora associada ao Laced (Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento) e ao NuCEC (Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia) no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ). Atualmente, é pós-doutoranda e bolsista Faperj na Universidade Federal do Rio de Janeiro. É mestre e doutora em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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