Os rompimentos das barragens de rejeitos de Fundão, em 2015, e de Brumadinho, em 2019, expuseram para o mundo algo que especialistas, ativistas, povos e comunidades situados nas proximidades desses empreendimentos já há muito tempo denunciavam: a vastidão, diversidade e multidimensionalidade dos riscos e efeitos socioambientais nocivos associados à mineração 1.
No contexto mais amplo das leituras críticas desse setor, este artigo se dedica a discutir um problema específico: o impasse em que se encontram aqueles que, mesmo afetados por esses efeitos nocivos, temem que os locais onde vivem virem “desertos” caso sejam paralisadas as atividades dessas mineradoras que parecem sustentar “por um fio tênue” a “existência” deles (Perrutti 2022). É nosso objetivo, portanto, contribuir para os debates que buscam compreender porque, a despeito de todas as evidências referentes a esses riscos, permanece considerável o apoio manifestado a eles pelas populações residindo em suas áreas de influência.
Autoritarismo e chantagens socioeconômicas nas práticas das mineradoras
Numa linha de pesquisa particularmente promissora, cientistas sociais têm explicado tal fenômeno explicitando as estratégias pelas quais as mineradoras buscam silenciar seus críticos e construir consensos, se antecipando a eventuais objeções e cerceando de forma autoritária 2 o debate político a respeito das atividades delas. De acordo com esses estudos, essas mineradoras se valem dos seus recursos econômicos e poder político para tentar, via inovações em suas práticas de governança e responsabilidade social, “neutralizar as múltiplas resistências locais” (Pinto 2019), buscando inviabilizar debates a respeito de outras - e menos predatórias - modalidades de relação com os ambientes onde estariam esses “recursos naturais”. Ao naturalizarem a exploração mineral como único caminho possível, essas empresas recorrem àquilo que a filósofa Isabelle Stengers chamou de alternativas infernais 3: se as comunidades querem usufruir dos empregos, da renda ou dos impostos gerados por essas empresas, elas deveriam então tolerar alguma poluição ambiental, ou resignar-se diante do fato de que “acidentes” como os ocorridos em Mariana e Brumadinho podem eventualmente ocorrer.
No caso da mineração, essas alternativas infernais estruturam verdadeiros “dispositivos de chantagem socioeconômica” (Acselrad e Bezerra 2010). Através de argumentos e estudos pretensamente científicos, veicula-se a ideia de que uma região que não explore os recursos naturais disponíveis, aqueles associados à “vocação econômica” dessas áreas, estaria inviabilizando o seu “desenvolvimento” ou “progresso” (vide as polêmicas que, recentemente, surgiram a respeito dos planos da Petrobrás para a exploração de petróleo na Foz do Amazonas 4).
Esses dispositivos empresariais podem ser qualificados como globais, na medida em que se difundem e consolidam pela ação de think thanks, consultorias, entidades supranacionais e agências multilaterais 5 que os implementam, a partir de um conjunto de modelos e protocolos, nos mais diversos cantos do planeta.
Algumas singularidades da vida social em áreas de ocupação recente
Mas no que concerne às grandes mineradoras atuando numa vasta área do interior do país - em localidades de Minas Gerais, Pará, Goiás, Mato Grosso, Bahia e Tocantins - vale à pena dedicar alguma atenção a certas especificidades da história e vida social dessas regiões, em especial quando estamos tratando de áreas cuja ocupação e povoamento sistemático ocorreu há relativamente pouco tempo. Assim é possível compreender porque, em regiões como essas, podem se tornar ainda mais constrangedoras as estratégias “chantagistas” de que se servem as mineradoras aí situadas.
Apresentando-se comumente como “mães” dessas cidades, essas empresas frequentemente propagam a ideia de que, sem elas funcionando ali, aqueles municípios voltarão a ser os “desertos”, “vazios”, ou “áreas decadentes” que eram antes de sua chegada. Esses argumentos se organizam a partir de uma “ideologia do pioneirismo” (Lins Ribeiro, 2008) que se faz presente há tempos nos interiores e sertões do país. Essa ideologia orienta uma visão historicamente inacurada do processo de ocupação dessas áreas, visão que invisibiliza povos e grupos que lá se encontravam antes da chegada desses “pioneiros” e que apaga o papel crucial do Estado e das políticas públicas nesse processo. Tais omissões não são circunstanciais, e têm o efeito preciso de enaltecer a ação “heróica” de empreendedores que teriam, por seus próprios recursos e méritos, “desbravado” e trazido o “progresso” a essas áreas.
As chantagens e alternativas infernais propulsionadas por essas mineradoras se revelam tão eficazes porque elas se servem de linguagens e imagens que tematizam, exploram e permitem a elaboração de medos e anseios coletivos
Mas essa ideologia do pioneirismo populariza-se também porque é capaz de avivar e ressignificar outras histórias. Ela possui a capacidade de se associar a memórias e experiências individuais e coletivas, relativas a dramas vivenciados nessas áreas por povos e grupos diversos, oferecendo linguagens e imagens através das quais podem ser expressos anseios e medos dessas pessoas - sobretudo no que se refere às consequências da intensa mobilidade espacial característica de suas vidas em tais áreas.
Há todo um conjunto de dinâmicas socioespaciais que, intensamente presentes aí, explicam os constantes deslocamentos caracterizando a vida dessas pessoas. Destacam-se entre essas dinâmicas as recorrentes “ondas revoltas de modernização superficial” (Martins 1998) invariavelmente atreladas às “febres” econômicas (Guedes 2013); ondas e febres que, com frequência associadas às oscilações de preços internacionais de commodities, reestruturam constante e violentamente modos de vida, territórios e economias regionais.
Tais ondas e febres se materializam através dos fluxos migratórios associados à abertura de novas oportunidades de negócio ou dos circuitos comerciais e redes de transporte constituintes de mercados legais e ilegais via projetos de colonização, cadeias logísticas e grandes obras de infraestrutura, ou ainda pelos movimentos e instabilidades que invariavelmente acompanham essas iniciativas - especulação imobiliária, grilagem de terras, disputas fundiárias, deslocamentos compulsórios, ameaças aos territórios de povos e comunidades tradicionais, aceleradas taxas de urbanização truculenta e excludente. As cidades que surgem subitamente do nada e aquelas que, pelo contrário, acabam de uma hora para outra e se tornam “cidades mortas”, são os signos por excelência dessas dinâmicas.
O que significa uma mineradora ser “mãe” de uma cidade
Tendo isso em mente é possível compreender melhor a persistência do apoio da população de Minaçu à mineradora de amianto que, nesse município do norte de Goiás, ainda é conhecida como “a mãe da cidade” 6 - a despeito dos malefícios que as atividades dessa empresa causaram à saúde dos que trabalhavam ou moravam aí 7.
Para tanto é preciso evocar certo sentido específico do termo “mãe”, aquele que sinaliza o enraizamento teimoso dessas pessoas que - num mundo onde tudo parece estar em movimento - permanecem no mesmo lugar. Permanecendo, essas mães fazem persistir as casas, terras e lugares de sossego 8 que, enquanto pontos de referência fixos, não apenas mitigam como viabilizam as andanças, movimentos e circulações. Diante das inúmeras febres - febre da cassiterita, do ouro, das barragens (Guedes 2013) - que se fizeram presentes nessa cidade ao longo das últimas décadas, a mineradora de amianto foi o único empreendimento que continuou ali. Tendo ela permanecido, argumentam os moradores, foi também a própria cidade que pôde continuar existindo.
Essas febres recentes reativaram memórias relativas a como, há gerações, é recorrente (e esperada) a alternância entre momentos de povoamento e despovoamento dessas áreas - alternância que, é claro, vincula-se à natureza efêmera e predatória das atividades econômicas aí prevalecendo. Assim, até hoje permanecem populares, no norte de Goiás, as histórias sobre o que ocorreu ali durante o ciclo do ouro do século 18, quando, no intervalo de duas ou três décadas, vilas e arraiais viveram seus dias de pujança para, em seguida, serem abandonadas ou quase inteiramente despovoadas, algumas dessas localidades literalmente sumindo do mapa.
Os receios de que, fechada a mineradora 9, Minaçu se torne uma “cidade de aposentado”, não exprimem apenas uma preocupação com a “economia” (que passaria, então e ainda mais, a depender de repasses do governo, pensões e auxílios). Aí, e via os usos que colorem com conotações locais o termo “economia”, manifestam-se sobretudo anseios relativos a questões envolvendo a família. O valor atribuído a esses que não partem e persistem, como essas mães metafóricas e reais, expressa justamente a centralidade da mobilidade espacial nas preocupações e arranjos existenciais das pessoas em questão.
O que os moradores dessa cidade sabem bem é que esses altos e baixos “econômicos” estão articulados a um sem número de deslocamentos espaciais; e que esses últimos não são vivenciados enquanto experiências de indivíduos isolados - mas sempre enquanto “movimentos em família” (Marques 2015), com implicações não apenas para os que circulam mas também para os parentes desses últimos. O que há de assustador numa “cidade de aposentado” é também a perspectiva do isolamento de quem, tendo permanecido ali, experimenta a solidão de um lugar do qual partiram seus entes queridos.
Assim, as chantagens e alternativas infernais propulsionadas por essas mineradoras se revelam tão eficazes porque elas se servem de linguagens e imagens que tematizam, exploram e permitem a elaboração de medos e anseios coletivos (da mesma popularidade e capacidade de comunicação não usufrui a maior parte dos discursos críticos que nós, a partir das ciências sociais, elaboramos para tratar desses empreendimentos). Se esses medos e anseios não são privilégio dessas áreas de colonização recente e intensa mobilidade espacial, aí eles são vivenciados com uma dramaticidade singular: pois o que está primordialmente em jogo, para a maior parte dessas pessoas, são preocupações referentes ao agravamento de suas já turbulentas vidas familiares.