A partir da divulgação, em 8 de julho de 2022, do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, a fome passou ao primeiro plano da discussão pública nacional. O relatório colocou em números o que se já sabia - em 2018 o país tinha voltado ao mapa da fome -, mostrando a dimensão do problema: 33 milhões de pessoas passando fome e mais da metade da população (58,7%) em situação de insegurança alimentar. Mais alarmante ainda: em apenas dois anos havia dobrado no Brasil a proporção de pessoas que não têm o suficiente para se alimentar. A denúncia se apresentou com a força moral que talvez só a fome possa evocar. E se impôs também para os seus negacionistas, não por acaso integrantes e apoiadores do governo Jair Bolsonaro, principais responsáveis pela tragédia, que se viram obrigados a entrar no debate mesmo que para denunciar a suposta falsidade ou sobredimensionamento dos dados. Imagens dilacerantes juntaram-se logo aos números e às percentagens, conferindo ainda mais realidade à situação: há poucos meses, pessoas na fila para comprar ossos e catando lixeiras a procura de comida; agora, os retratos do genocídio do povo Yanomami, entre os quais oito de cada dez crianças estão em situação de desnutrição extrema.
Ao lado desse diagnóstico alarmante, outra ameaça rondava nos debates eleitorais no ano passado: a possibilidade de contestação dos resultados das urnas, a culminação de um processo de desgaste institucional operado como política de governo nos últimos anos. E assim como a fome voltava ao espaço público, a possibilidade de ruptura democrática também retornou, quase quatro décadas após o fim da ditadura militar.
Democracia e enfrentamento da fome possuem uma relação intrínseca em termos morais e políticos. Ambos remetem a direitos humanos fundamentais, aqueles considerados parâmetros básicos de garantia da vida, entendida como um nexo necessário entre a existência biológica dos indivíduos e a existência coletiva das sociedades. A fome aponta a impossibilidade da reprodução biológica dos organismos humanos, além de remeter a uma sensação corporal insuportável de carência e necessidade. A fome é, assim, um fato bio–social que evoca um julgamento moral e envolve uma denúncia, um chamado à ação coletiva.
Hoje fica mais claro do que nunca que a forma de combater a fome e o genocídio é a defesa intransigente da democracia como prática institucional e cotidiana, única maneira disponível de governar de modo eficaz e igualitário as vidas coletivas
Essa não é só uma relação entre princípios abstratos. Tanto o reconhecimento da fome como um problema público quanto a participação democrática têm nas suas bases condições institucionais e práticas que, não apenas coincidem, mas se retroalimentam: a existência de instituições produtoras de informação sobre a sociedade, de uma imprensa livre e de uma coletividade que se entende como tal. Por seu lado, o autoritarismo produz fome como fato ao mesmo tempo que tenta negá-la como problema público. O boicote orçamentário à realização do Censo populacional, por exemplo, e a tentativa de desautorização do jornalismo profissional andaram de mãos dadas, durante o governo Bolsonaro, com o desmonte de importantes políticas de assistência e com o estímulo a setores econômicos predatórios e concentradores de riqueza. O Cadastro Único para Programas Sociais foi descaracterizado, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar foi descontinuado, e o Programa de Aquisição de Alimentos e os Estoques reguladores foram praticamente extintos.
Dados públicos e estatísticas confiáveis permitem que experiências singulares sejam agregadas de forma a poderem ser concebidas como coletivas permitindo agir sobre elas. Isso tem como base e resultado a percepção das pessoas como pertencentes a comunidades e o reconhecimento de responsabilidades compartilhadas. Textos e imagens nos jornais, na televisão e na internet trazem, aos que a observam como algo distante de seu cotidiano, a singularidade do drama e do sofrimento de pessoas reais. Para os que dela padecem, a fome é uma forma extrema de viver a desigualdade que tem o efeito de deslegitimar a democracia como modo de vida coletivo em razão do abandono e da indiferença daqueles que governam.
A transformação da fome em problema público tinha acompanhado o processo de transição da ditadura à democracia. Em 1993, só cinco anos depois de promulgada a Constituição, em 1988, nasceu a campanha Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, iniciativa que existe até hoje e que teve como fundador o saudoso Herbert de Souza, o Betinho. Dez anos depois, ao assumir o seu primeiro mandato como presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva anunciou o combate à fome como a primeira tarefa do seu governo, tarefa esta que se concretizou em 2014 quando o país saiu, ainda que por pouco tempo, do mapa da fome, segundo os critérios estabelecidos pela Organização das Nações Unidas. A fome existe entre nós hoje como problema coletivo que só pode ser resolvido por meio de vigorosas políticas públicas que criem as condições de sua própria sustentabilidade. Nos últimos anos assistimos a um processo contrário, de desmonte metódico e acelerado dos instrumentos de conhecimento da sociedade brasileira e da situação alimentar da população, e à dilapidação de instituições de controle e participação social.
A história longa da fome no Brasil revela a sua relação intrínseca com a extrema desigualdade e com o autoritarismo que persiste no legado e na presença contemporânea do escravismo na forma de racismo e de etnocídio, por um lado, e de ameaças golpistas, por outro. A negação da fome é um sintoma trágico de regimes de produção de desigualdade social e de ameaça autoritária. Ao contrário, como foi provado no período democrático vivido pelo Brasil a partir de 1988, e mais intensamente entre 2003 e 2016, a identificação dos problemas coletivos que afetam a população da nação está intrinsecamente ligada à vida democrática e vice-versa. Assim, hoje fica mais claro do que nunca que a forma de combater a fome e o genocídio é a defesa intransigente da democracia como prática institucional e cotidiana, única maneira disponível de governar de modo eficaz e igualitário as vidas coletivas. A democracia só tem condições de se consolidar e de perdurar se os anseios e aspirações das pessoas encontrarem voz e interlocutores. Não é possível separar as duas coisas.