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OPINIÃO

Favela também desenha, monitora e avalia política pública

Viviane Helena Silva da Rocha, Thiago Nascimento e Bruno Sousa 13 de Março de 2023 (atualizado em 28 de Dezembro de 2023)

O envolvimento da sociedade civil na elaboração, implementação e monitoramento das políticas públicas é garantido pela Constituição Federal de 1988 através de um sistema conhecido como “controle social”. Os moradores de favelas e pessoas em vulnerabilidade socioeconômica podem ser agentes ativos e propositivos nestes processos

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As políticas públicas têm por objetivo promover o desenvolvimento econômico e social da população, principalmente dos segmentos mais vulneráveis, prezando por uma alocação eficiente dos recursos públicos. No caso do Brasil, grande parte do público-alvo dos programas sociais são, portanto, pessoas moradoras de favelas . No entanto, observa-se uma desconexão entre o conhecimento das necessidades e particularidades locais e o processo de formulação de programas, nos quais a sabedoria dos moradores muitas vezes não é consultada e considerada. O desenvolvimento e a avaliação de políticas públicas de qualidade podem se beneficiar da contribuição regular dos moradores de favelas.

O envolvimento da sociedade civil nos processos de elaboração, implementação e monitoramento das políticas públicas é garantido pela Constituição Federal de 1988 através de um sistema conhecido comocontrole social. Algumas das contribuições mais significativas da sociedade civil são as perspectivas de co-criar diagnósticos de necessidades reais aos gestores públicos, apontar programas possivelmente conflitantes ou pouco coordenados e aumentar a transparência na gestão dos recursos, com menos desperdício e maior eficiência nos serviços prestados.

Nesse sentido, identifica-se um segundo potencial papel para os moradores de favelas e pessoas em vulnerabilidade socioeconômica, não somente como agentes passivos e beneficiários, como também agentes ativos e propositivos na concepção, monitoramento e avaliação das políticas públicas. Entretanto, esse mesmo público enfrenta desafios, como insegurança alimentar, violência institucional e escassez financeira , que, quando combinados com outras barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva.

Ao abrir o processo de formulação, monitoramento e avaliação das políticas públicas à crítica e à criatividade dos territórios favelados, estimula-se a potencialidade, o protagonismo e a participação cidadã

Quando se parte do pressuposto de que as condições de pobreza e vulnerabilidade apresentadas pelos beneficiários são multidimensionais, a potencialização da sua participação na gestão de programas sociais, além de contribuir para políticas públicas possivelmente inovadoras, mais adaptadas e eficazes, também oferece uma ocasião de valorização do protagonismo dos beneficiários e de seu saber periférico. Ao abrir o processo de formulação, monitoramento e avaliação das políticas públicas à crítica e à criatividade dos territórios favelados, estimula-se a potencialidade, o protagonismo e a participação cidadã.

A favela também monitora e avalia políticas públicas. Seus moradores estão cotidianamente inseridos em sua execução e seus impactos. As famílias, as mulheres, os idosos, as crianças, as pessoas com deficiência e as pessoas empreendedoras têm insumo empírico para analisar e propor soluções, feitas para e pela favela.

A fim de conectar quem deveria estar participando e sendo ouvido ao conhecimento que informa novas políticas sociais, é imprescindível o avanço na criação de novos espaços e estratégias de participação dos territórios em vulnerabilidade social e nas favelas. Tais espaços podem ser oficinas, rodas de conversa, palestras e eventos que apresentam conhecimento científico às pessoas, incitam debates e criam um momento de compartilhamento de experiências acerca da vida pública em sua região.

A partir da observação que o conhecimento científico tradicional não retrata fielmente a realidade vivida pelos moradores da favela, um grupo de jovens se uniu durante a pandemia da Covid-19 e criou o LabJaca , um laboratório de dados e narrativas da favela, voltado à produção de dados, formação de pessoas e disseminação de conhecimento através da comunicação acessível. O objetivo do LabJaca é se tornar referência no estímulo da agenda em que políticas públicas voltadas para a favela sejam de fato baseadas em evidências que se atendam à realidade da periferia, nas quais os moradores de favela sejam respeitados e tratados como agentes ativos na produção de conhecimento, e não como meros objetos de pesquisa.

Éfundamental para a efetividade da proposta observar as particularidades de cada lugar e adequar a metodologia à cultura local, assim como priorizar parcerias com pesquisadores do próprio território e ter uma conexão direta com a população local e com as instituições que compõem o espaço. A identificação dos moradores com os pesquisadores e equipe de campo são fundamentais para conseguir coletar dados e histórias potentes que não apareceriam em pesquisas que seguem um modelo “tradicional” ou são consideradas, por muitas das vezes, subjetivas.

A comunicação acessível cumpre esse papel quando ressalta, a partir do que já pertence à realidade dos moradores de favela, que eles são parte da solução. Para que o conteúdo faça sentido na prática, pode-se utilizar técnicas de divulgação como documentário, vídeo em motion, projeções, lambe-lambe e eventos; além de estabelecer comparações com acontecimentos cotidianos e próximos às realidades dos moradores. Sabia que, por exemplo, o valor de um fuzil utilizado pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro cobriria todas as despesas relacionadas a um aluno da rede pública por um ano? Isso inclui materiais e alimentação.

Em novembro de 2022, o LabJaca com apoio da Casa Fluminense lançou a primeira edição do Curso “A Favela que Queremos: Curso de Políticas Públicas” com o objetivo de fomentar a democratização do acesso ao conhecimento sobre, principalmente, políticas públicas dentre a população do Jacarezinho e Manguinhos, favelas situadas na Zona Norte do Rio de Janeiro, onde o LabJaca nasceu. A formação busca fortalecer lideranças, movimentos e coletivos que pensam a favela como um espaço de construção de novas ideias e terá como resultado final a produção de um podcast com os alunos sobre a percepção deles quanto aos temas que foram debatidos em sala de aula.

A constatação de que a academia carece de diversidade e participação civil na geração e discussão do conhecimento também repercute no trabalho do J-PAL (Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab) no Brasil. O J-PAL é um centro de pesquisa global que trabalha para reduzir a pobreza, garantindo que políticas públicas sejam informadas por evidências científicas. O J-PAL oferece cursos online e presenciais para formuladores de políticas públicas, fundações e entidades do terceiro setor e da sociedade civil sobre como gerar e usar evidências rigorosas. A equipe de políticas públicas trabalha para institucionalizar aprendizados e disseminar os resultados científicos para parceiros.

O J-PAL lançou sua primeira iniciativa no Brasil em 2021 graças ao generoso apoio da Fundação Arymax , B3 Social , Fundação Tide Setubal , Potencia Ventures , Banco Interamericano de Desenvolvimento e Insper . Denominada JOI Brasil, a Iniciativa Empregos e Oportunidades fomenta a avaliação de impacto de políticas públicas que buscam promover a inclusão de pessoas em situação de vulnerabilidade no mercado de trabalho brasileiro. A iniciativa também publica estudos sumarizando resultados recentes da literatura em linguagem acessível e promove seminários de disseminação de conhecimento. Os eventos são gratuitos e abertos ao público, e líderes comunitários, curiosos por políticas públicas e gestores de programas sociais periféricos são especialmente bem-vindos.

A equipe da JOI Brasil foi convidada pelo LabJaca a ministrar a aula sobre Justiça Econômica e Empregabilidade no curso, em que compartilhou evidências científicas sobre programas sociais de apoio ao empreendedorismo, qualificação profissional e apoio na busca por emprego. Em seguida, após apresentar o conceito e a estrutura de uma Teoria da Mudança, promoveu um espaço de reflexão em que os alunos assumiram um papel ativo e propositivo de apresentar possíveis soluções e inovações sociais para seus desafios cotidianos.

Durante a aula, as pessoas participantes compartilharam diversos relatos de sua experiência em primeira mão como beneficiários. Dentre eles, um aluno compartilhou ter testemunhado incoerências na execução simultânea de duas políticas públicas no mesmo território. Enquanto uma buscou apoiar o empreendedorismo local e atrair mais consumidores, outra deu início a uma intervenção na segurança pública, limitando o ir e vir de moradores e visitantes. Tais relatos corroboram a importância de escutar beneficiários que conhecem os problemas locais e o que se passa no território afim de melhorar de maneira mais eficiente o desenho de políticas públicas e suas adaptações processuais.

O LabJaca e a JOI Brasil compartilham os objetivos de gerar conhecimento robusto com base em dados sobre pessoas em vulnerabilidade social e econômica, disseminar a informação ao público geral e incitar o debate, incluindo na mesa as pessoas que cotidianamente vivem a realidade em foco, para entender como as políticas públicas podem ser cada vez mais eficientes para as pessoas em situação de pobreza. O compartilhamento de evidências e a co-participação da sociedade civil, especialmente dos segmentos mais vulneráveis, pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida de milhares de pessoas no Brasil, uma vez que as políticas públicas eficientes sejam escaladas.

Bibliografia

Viviane Helena Silva da Rocha é analista de pesquisa e políticas públicas na JOI Brasil (Iniciativa de Empregos e Oportunidades no Brasil) do J-PAL LAC . Através do fortalecimento de ações inovadoras e do fomento às pesquisas rigorosas, a JOI Brasil busca qualificar o debate sobre o mercado de trabalho brasileiro e disseminar o conhecimento adquirido para governos, sociedade civil, empresas e fundações no país. Mestre em expertise econômica de projetos e políticas de desenvolvimento pelo Iedes (Instituto de Estudos de Desenvolvimento) da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e bacharel em relações internacionais pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Thiago Nascimento fundou os projetos Jacaré Basquete, Jaca Contra o Corona, LabJaca e Centro Próxim8. Atua como diretor de relações institucionais no LabJaca . Em 2020 foi selecionado no Edital Caminhos de Apoio a Lideranças Negras, da Fundação Tide Setubal com apoio do Instituto Ibirapitanga e da Porticus. Premiado como destaque no Shell Iniciativa Jovem 2020.

Bruno Sousa é cofundador do LabJaca , onde atua como coordenador de comunicação. Jornalista com foco em raça, segurança pública e direitos humanos. Possui passagem pelas redações do The Intercept Brasil e Agência Narra, também colabora para veículos como UOL, Estadão, Meia Hora, Folha de São Paulo, Vice e Huffpost. Atuou na comunicação e pesquisa no CESeC pelo projeto Panóptico, na comunicação institucional da Redes da Maré e como coordenador de marketing na Barkus Educacional.


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