Encarceramento feminino e tortura: o contexto do Rio de Janeiro

Natália Damázio
Relatório temático analisa o tema no estado do Rio de Janeiro e aponta 89 recomendações para diversos níveis da federação e poderes, para redução das violências contra mulheres enfrentadas no sistema prisional

Em 2015, tendo em vista a situação absolutamente aviltante que encontrávamos em nossas inspeções em unidades femininas e mistas no Rio de Janeiro e a ausência de informações sobre mulheres no sistema prisional e socioeducativo, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro 1 elaborou o Relatório Temático “Mulheres, Meninas e Privação de Liberdade”, lançado em 2016. Esse documento abordou a condição das então sete unidades femininas prisionais e a socioeducativa. No ano de 2022 tivemos a ideia de realizar uma nota técnica que compararia o estado de coisas encontrado naquele ano e o que havia sido superado ou agravado no decurso de sete anos. O volume de informações era tão denso e com tantas novas violações que entendemos que não se tratava de uma nota técnica, mas de um novo relatório temático 2.

Assim surgiu o “‘Se põe no seu lugar de presa’: Violações de Direitos Humanos de Meninas e Mulheres em Privação de Liberdade no Rio de Janeiro”. A frase que nomeia o relatório foi dita por uma agente de Estado a uma adolescente, na única unidade socioeducativa 3 do Rio de Janeiro para meninas, o PAC-GC localizado na Ilha do Governador.

Temos que destacar que o número pequeno de mulheres e meninas privadas de liberdade no estado, se comparados aos homens, não dão a elas uma condição de vida menos atroz e torturante do que as experienciadas em unidades prisionais masculinas. Ao longo dos anos pudemos compreender que é fruto do machismo e racismo, que permeiam todo sistema de justiça e de segurança pública, o tratamento secundário dado a este tema. Sequer três mortes por incêndio em 2018 e 2019 no sistema prisional, um estupro no sistema adulto e diversos que tiveram lugar no PAC-GC em 2021 serviram de alerta para sociedade de que algo está operando de modo absolutamente violento dentro das unidades de privação femininas.

Olhar a tortura contra mulheres no estado do Rio de Janeiro demanda entender que essa é produzida para tentar o colapso da subjetividade da presa. Compreender isto é central para repensarmos o conceito de tortura para além do debate de sua criminalização, mas também tratando de outras formas de prevenção e reparação

Olhar a tortura contra mulheres no estado do Rio de Janeiro demanda entender que essa é produzida para tentar o colapso da subjetividade da presa. Compreender isto é central para repensarmos o conceito de tortura para além do debate de sua criminalização, mas também tratando de outras formas de prevenção e reparação. A tortura, quando olhamos para o sofrimento sentido e relatado pelas meninas e mulheres em privação de liberdade, está presente no cotidiano das unidades e se adapta às vulnerabilidades de modo a ampliar o sofrimento produzido: ela está na água aberta cinco vezes ao dia, na falta de notícia dos filhos, nas 12 a 15 horas de jejum forçado, na separação da mãe e do bebe, na revista vexatória de presas, na ausência de quaisquer estruturas de prevenção a incêndio, no transporte superlotado, nas estruturas arquitetônicas improvisadas e arcaicas, na distância da família, na solidão, no ócio e na tranca.

Este último ponto merece destaque, tendo em vista que um dos maiores retrocessos encontrados foi, justamente, o uso de isolamento celular 4 de modo absolutamente desproporcional. Em janeiro deste ano, e reforçado pela Resolução 995 de 1º de junho, publicada pela Secretaria de Administração Penitenciária/SEAP, a Penitenciária Laércio Pelegrino conhecida como “Bangu 1” ou “B1” se tornou Unidade mista 5. A unidade copia em absolutamente tudo o regime de tortura presente no isolamento celular prolongado previsto para o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) 6, encontrado nas unidades federais. O RDD ocorre aqui a nível estadual de modo absolutamente oficioso, na qual encontramos mulheres com sofrimento psíquico se referindo de modo ininterrupto ao quanto a ideação suicida tem feito parte do seu cotidiano no local.

O total de unidades são nove, incluindo o B1, distintas das presentes no primeiro relatório. Das nove, quatro são mistas que se tornam 27 ao incluirmos mulheres trans e travestis. Em março deste ano eram 1415 mulheres presas no sistema penitenciário fluminense, havendo ainda 6.460 processos no Seeu (Sistema Eletrônico de Execução Unificado) 7 nos quais elas representam o polo passivo, estando 1.372 em cumprimento de pena alternativa 8 e 1.100 em livramento condicional 9. Os dados nacionais são de 104.408 mulheres com processos de execução penal 10 e 28.699 presas em junho de 2022, último dado disponível 11.

Os dados gerais do país estão desatualizados desde 2018, no entanto, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) Mulheres, única fonte que nos permite racializar o debate do sistema prisional do estado, aponta que 65% das presas no Rio de Janeiro se autodeclaram negras, margem superior ao índice nacional que é de 62%.

Quando buscamos informações sobre a população LGBTQIAP+ há ainda menor acesso a dados , sendo necessário buscar o efetivo feito pela Cofemci (Coordenação de Unidades Femininas e Cidadania LGBT) da Seap/RJ (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro), que não é público, para sabermos que em 2022 havia 768 pessoas deste perfil presas, sendo 176 destas lésbicas, 287 bissexuais, 133 mulheres trans, 62 travestis, 31 homens trans e 105 gays.

Já no socioeducativo que há somente uma unidade de internação 12 e internação provisória 13 no Estado, os dados presentes em nossa visita de 21 de setembro de 2022 apontava para 26 jovens entre 14 e 18 anos, das quais 19 são negras, totalizando 73% das internas. Ainda vale menção que três destas eram meninas trans.

Nosso relatório assim se estruturou para comparar o que foi e o que é hoje o sistema, sendo ele dividido por temas e unidades, incluindo aquelas que mudaram de perfil e as que foram inauguradas. Abordamos durante suas 270 páginas os seguintes temas: estrutura, salubridade e superlotação, que se divide em arquitetura, vagas, regime, água, alimentação e outros itens básicos; ócio e confinamento que analisa questões sobre trabalho, educação, banho de sol, confinamento e solidão; maternidade e cárcere; saúde, que se subdivide em acesso a saúde e hospitais penais psiquiátricos e reforma psiquiátrica; e, por fim, violência institucional, que trata de agressões físicas e psicológicas, violência sexual, isolamento e LGBTQIAP+ fobia. Ao fim realizamos 89 recomendações distintas, para os mais diversos níveis da federação e poderes para que pelo menos comecemos a caminhar em direção a redução das violências contra mulheres enfrentadas no sistema prisional.

Natália Damázio é doutora em teoria do Estado e direito constitucional pela PUC-Rio, e mestra em teoria e filosofia do direito pela Uerj. Membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.

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