Du Bois no Gueto de Varsóvia: a questão judaica numa perspectiva negra

Sara Antunes de Oliveira e Souza
O encontro com os escombros e memórias do Levante do Gueto de Varsóvia, de 1943, irá promover a maior transformação nas perspectivas do autor

Três viagens à Polônia feitas ao longo de mais de cinquenta anos aproximaram William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963) da questão judaica nos séculos 19 e 20. Esses momentos, em 1893, 1936 e 1949, são marcos na trajetória do intelectual e da sua compreensão dos problemas raciais a partir das dimensões do imperialismo e da supremacia branca. Mas é o último encontro com os escombros e memórias do Levante do Gueto de Varsóvia, de 1943, que irá promover a maior transformação nas perspectivas do autor. Iluminamos a seguir os percursos de Du Bois entre os traçados convergentes das questões judaica e negra nas distintas viagens, atravessando estratégias de racialização presentes na segregação dos afrodescendentes nos Estados Unidos e a guetização das populações judaicas na Europa, e que culminaram no breve texto “O Negro e o Gueto de Varsóvia”, proferido a convite da revista Jewish Life em 1952.

W. E. B. Du Bois primeiro visitara a Europa enquanto doutorava-se na atual Universidade Humboldt de Berlim entre 1892 e 1894. Naquela altura, parte considerável do território e populações polonesas integravam o Império Alemão (1871-1918) e o autor reconheceu as interdições costumeiras e legais direcionadas a eslavos e judeus, vedados a certas carreiras, à educação, ao uso do idioma e restringidos também religiosamente. Todavia, estas eram polarizações distintas daquelas do racismo antinegro, porque não fundamentavam-se em marcas corporais. Para Du Bois, diziam respeito a arbitrários ordenamentos civilizacionais.

Os escritos do autor do período reconheciam o caráter global do racismo, mas abordava-o a partir da posição das populações negras estadunidenses, procurando incorporá-las cultural e racialmente na grande narrativa da civilização. Na medida em que o mundo anulava a humanidade negra, relegando-a como ascendência ausente na história, enxertada a esta apenas pelos horrores do tráfico transatlântico, o sociólogo alega que a grande contribuição da raça estivera impedida de revelar-se pela interposição do racismo. Dessa maneira, Du Bois combateu continuamente a noção de “problema negro”, referenciada como inerente, examinando condições então presentes de segregação e opressão das populações negras e aquelas anteriores à emancipação, demonstrando com profundo aporte histórico a autonomia destas nesse mesmo processo, seja na Guerra Civil (1861-1865), seja no progressista passo posterior, a Era da Reconstrução (1863-1877). O “problema negro” era o racismo sofrido, não a presença dos negros nos Estados Unidos.

O que conectava os dois diferentes pontos na história, a segregação das populações negras estadunidenses e a guetização e genocídio das populações judaicas europeias, era o quanto ambos ensinavam sobre a persistente estruturação do racismo e as possibilidades de resistência, apontando ao futuro

Embora tendo presenciado situações marcadas pelo antissemitismo e acompanhado com atenção o Caso Dreyfus na França, as experiências de exclusão dos judeus europeus e especialmente dos judeus estadunidenses, cuja realidade fora diferente de várias maneiras, eram tidas como transitórias, uma vez que estariam mais conectadas a aspectos culturais e econômicos, e pouco com as falácias do racismo científico sobre hierarquias naturais. Mesmo sendo inferiorizados culturalmente, os judeus não eram tidos como biologia aparte, como outro ramo da humanidade, tal qual defendido pelas teorias poligenistas. Na época, o sociólogo incluso reproduzira preconceitos de teor econômico contra judeus, dos quais desculpou-se anos mais tarde e corrigiu em futuras revisões da obra “As almas do povo negro” (Du Bois, 2021).

Apenas três anos antes do início da Segunda Guerra Mundial, em 1936, Du Bois viaja à Alemanha e à Áustria após receber financiamento para estudo do ensino técnico germânico, conhecimento que deveria servir à formação da população negra do Sul ainda afetada pela depressão econômica (Lewis, 2000). O sociólogo reconhece os maus auspícios do nazismo ao passar por esses países e pela Polônia uma segunda vez. Na ocasião, o intelectual era notório internacionalmente pelo ativismo político e reunia estudos importantes acerca dos conflitos interimperialistas da Primeira Guerra Mundial, exemplo de “The African Roots of War”, de 1915, e escritos pioneiros sobre características da branquitude estadunidense e europeia, como “The Souls of White Folk”, de 1920. Entendia, então, que a tomada do poder pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) não rompia com a vigente supremacia branca das nações colonizadoras: “Hitler é o expoente bruto, mas lógico, da filosofia mundial da raça branca desde a Conferência de Berlim em 1884” (Du Bois, 1945, p. 86; tradução nossa).

Na terceira e última viagem, em 1949, Du Bois fora confrontado com a dimensão do projeto hitlerista assistindo à paulatina reconstrução da Varsóvia, após a cidade ter sido efetivamente obliterada durante bombardeio pelos nazistas em 1944. Chocado com a extensão da destruição promovida pelos germânicos – cerca de 85% da cidade –, o autor vislumbra a persistência dos poloneses em reerguer-se junto dos pedaços de concreto (Rothberg, 2009). “Eu vi algo da agitação humana neste mundo: o grito e os tiros de um motim racial em Atlanta; a marcha da Ku Klux Klan; a ameaça de tribunais e da polícia; a negligência e destruição de habitações humanas; mas nada em minha imaginação era igual ao que vi na Varsóvia em 1949” (Du Bois, 1991, p. 252; tradução nossa).

Em meio às ruínas, as fronteiras do antigo gueto judaico mantinham-se apagadas da paisagem e a memória do espaço era reavivada fisicamente apenas pelo monumento do artista Nathan Rappaport homenageando a relevância do levante de 19 de abril de 1943. Na data, judeus poloneses confinados atrás de arames farpados no Gueto de Varsóvia, o maior da ocupação nazista, realizaram uma revolta armada contra soldados germânicos resistindo ao envio para o campo de concentração de Treblinka. Ao longo dos anos de guerra, estes haviam sido apinhados às centenas de milhares em um número reduzido de apartamentos e casas na zona residencial judaica da cidade, área de livre circulação posteriormente encolhida e transfigurada em isolamento mandatório. Em números isto representava a quantia de 30% dos moradores da Varsóvia no espaço geográfico limitado referente a 2,4% do total da cidade (Kassow, 2009).

O gueto fora instituído em novembro de 1940 e de início encontrava-se ali apenas a população judaica da Varsóvia, mas com o passar dos meses e anos, o contingente subia acentuadamente com a chegada de judeus poloneses de várias regiões feitos refugiados internos pelos alemães e por estes transportados até a zona segregada. Na sequência ao aprisionamento, foram negligenciados para morrer de doenças, fome e frio, saindo periodicamente apenas com destino aos campos de concentração do Terceiro Reich, espaços de trabalhos forçados e extermínio. Mais de 40 mil morreram apenas em 1941, o equivalente a 10% daqueles reunidos forçosamente (Kassow, 2009). O confinamento era uma estratégia da política de terror racial nazista. Reunidos os judeus, o extermínio era facilitado, fosse pela redução das possibilidades de sobrevivência ao não acessarem direitos básicos, fosse pelos transportes em massa a campos.

Cativos no gueto e cientes da diferença de poder entre equipados soldados germânicos e judeus mal armados que recebiam rações alimentares diárias de 184 calorias (Kassow, 2009), não deixaram de planejar o testemunho dos crimes vigentes e a oposição aos algozes: primeiro, pelo registro clandestino de suas experiências e histórias; segundo, na luta armada contra o exército invasor. Centenas de alemães foram mortos nas estratégias de guerrilha da resistência iniciadas naquele 19 de abril. Porém, passados quase um mês de lutas, os judeus poloneses foram efetivamente derrotados. A provação final do gueto foi o incêndio das construções para fuga daqueles em abrigos improvisados atrás das paredes, acima dos tetos, sob os pisos, escondidos em quartos ocultos, etc. Em 16 de maio de 1943, a sinagoga fora simbolicamente destruída e as autoridades em Berlim comunicadas de que este não mais existia. O que Du Bois presencia em 1949 é esta simultânea ausência material e presença na memória.

Desde a mais célebre frase do sociólogo, a transversalidade do racismo e da experiência da dupla-consciência, a cisão entre pertencer profundamente à nação e ao grupo populacional por esta segregado e oprimido, são colocadas aos leitores: “O problema do século 20 é o problema da linha de cor – a relação entre as raças de homens mais claros e mais escuros na Ásia e na África, nas Américas e nas ilhas do mar” (Du Bois, 2021, p. 35).

Mas em 1952, quase 60 anos depois dessa famosa afirmação, o sociólogo expande a noção inicial de linha de cor ao entender que a realidade dos judeus complexifica-a, portanto, incidindo também na questão negra, sendo um dentre diversos atravessamentos imbricados. “(...) o problema racial no qual eu estava interessado atravessava linhas de cor e físico e crenças e status e era uma questão de padrões culturais, ensino pervertido e ódio e preconceito humano, que atingia todos os tipos de pessoas e causava um mal sem fim a todos os homens” (Du Bois, 1991, p. 253; tradução nossa). Assim, os rumos especificamente estadunidenses de progressos e retrocessos entre escravidão, emancipação e segregação não estavam desassociados dos avanços globais do racismo, e da resistência dos judeus no Gueto de Varsóvia.

O que faz da revisão conceitual do sociólogo algo tão importante aos estudos raciais e do Holocausto, explica o historiador Michael Rothberg (2009), é que este não equaliza as experiências negra e judaica ou concede proeminência a quaisquer delas separando-as, ou mesmo deseja amalgama-las ao universalismo pós-guerra dos direitos humanos. O que conectava os dois diferentes pontos na história, a segregação das populações negras estadunidenses e a guetização e genocídio das populações judaicas europeias, era o quanto ambos ensinavam sobre a persistente estruturação do racismo e as possibilidades de resistência, apontando ao futuro. Du Bois não deixaria de centrar sua abordagem na experiência do racismo estadunidense, mas sempre contextualizando-o ao racismo em escala global.

Du Bois encerra o texto de 1952 com um chamado à resposta conjunta sobre o caminho a seguir. A filosofia racial que engendrou a política genocida antissemita de Adolf Hitler, a mesma que há séculos fomentava colonização, escravidão e segregação, mantinha-se viva depois da Segunda Guerra Mundial. Seus prolongamentos eram reconhecidos na manutenção da lógica imperialista, na opressão cultural e econômica de grupos populacionais africanos, americanos, árabes, asiáticos e europeus e somente poderiam ser combatidos a partir de um projeto emancipatório unificado, que carregaria as memórias das resistências ao terror racial. Afinal, “o fim da guerra e a preparação para a guerra” eram feixes da linha de cor e dos problemas raciais daquele e do nosso século.

Bibliografia

Du Bois, W. E. B. As almas do povo negro. Tradução de Alexandre Boide. Ilustração de Luciano Feijão. Prefácio de Silvio Luiz de Almeida. – São Paulo: Veneta, 2021.

Du Bois, W. E. B. Dusk of Dawn: An Essay toward an Autobiography of a Race Concept. New York: Oxford University Press, 2007.

Du Bois, W. E. B. “The Negro and the Warsaw Ghetto”. In: W. E. B. Du Bois Speaks: speeches and addresses, 1920 e 1963. Edited by Dr. Philip S. Foner. New York; London: Pathfinder, 1991.

Lewis, David Levering. W. E. B. Du Bois: The Fight for Equality and the American Century, 1919-1963. New York: Henry Holt and Company, 2000.

Kassow, Samuel D. Quem escreverá nossa história?: os arquivos secretos do Gueto de Varsóvia. Tradução Denise Bottman. – São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Rothberg, Michael. Multidirectional memory: remembering the Holocaust in the age of decolonization. Stanford: Stanford university Press, 2009.

Sara Antunes de Oliveira e Souza é mestranda em sociologia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), graduada (2020) em ciências sociais pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e graduada (2012) em jornalismo pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais). Pesquisa leis anti-miscigenação, supremacia branca e processos de racialização na Alemanha e nos Estados Unidos em estudo comparado a partir da sociologia histórica.

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