Contribuições da agricultura urbana para o estado de saúde

Mayra Figueiredo Barata
O sistema agroalimentar precisa sofrer modificações para que se torne sustentável, saudável e promotor da diversidade alimentar e de culturas e dietas locais

A Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares e Saudáveis conduziu um estudo com objetivo de produzir uma caracterização do estado de saúde e da alimentação das populações da cidade de Belém e de São Paulo.

O estudo, ainda em desenvolvimento, utilizou dados mais recentes dos Inquéritos Nacionais de Saúde, como a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) e a Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), e do Sistema de Vigilância em Alimentação e Nutrição (SISVAN) e levantou alguns dados interessantes das duas cidades.

A pesquisa identificou que a cidade de Belém possui altas prevalências de indicadores de desnutrição, sobrepeso e obesidade e de um grupo específico de Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNT), o de doenças respiratórias, como asma e doenças do pulmão. No entanto, ainda possui prevalências de outras doenças crônicas como diabetes, câncer e doenças do coração, menores do que prevalências nacionais. Em relação a alimentação, a população da cidade consome menos alimentos saudáveis (feijão, frutas e hortaliças e legumes e/ou verduras) e não saudáveis (alimentos ultraprocessados) quando comparado ao consumo nacional desses alimentos.

Na cidade de São Paulo, por sua vez, foram identificadas baixas prevalências de indicadores de desnutrição e altas prevalências de sobrepeso, obesidade e da grande maioria das doenças crônicas. Além de elevado consumo de alimentos saudáveis e dos não saudáveis quando comparados ao consumo nacional desses alimentos.

O sistema agroalimentar global atual é um dos principais fatores de degradação ambiental e de adoecimento de populações 1, 2, 3. O sistema possui características como a monotonia das paisagens agrícolas e a dependência de produtos químicos, além da utilização de circuitos longos de comercialização de alimentos. Essas características levam ao desmatamento, esgotamento do solo, contaminação de rios e ecossistemas aumentam o custo energético de transporte, o número de perdas e desperdícios de alimentos, contribuem para a perda progressiva de habitats e biodiversidade e, consequentemente, para o aquecimento global 4, 5, 6.

Paralelamente, produz novos e modernos alimentos que são incorporados ao dia a dia de indivíduos. Predominantemente, esses alimentos possuem alta densidade energética, elevados teores de açúcares, sódio, gorduras saturadas e trans e baixos níveis de fibra. Além disso, são produtos altamente saborosos, convenientes, embalados e prontos para o consumo 7, 8, 9. Esses alimentos são classificados como “ultraprocessados”, de acordo com a Classificação Nova 10.

A produção de alimentos dentro e próxima das cidades estimula mudanças nos padrões de consumo, tem efeitos pedagógicos ambientais e alimentares, gera renda e desenvolvimento local e tem efeitos ecossistêmicos, como aumento da diversidade de insetos e polinizadores em ambientes urbanos e redução da perda de alimentos

A classificação Nova classifica os alimentos em quatro grupos, de acordo com a extensão e o objetivo do processamento, são eles: alimentos in-natura e minimamente processados; ingredientes culinários processados; alimentos processados e alimentos ultraprocessados. Alimentos neste último grupo incluem formulações feitas em grande parte ou inteiramente de substâncias derivadas de alimentos e aditivos, com pouca ou nenhuma substância intacta do grupo 1, 10. O grupo de alimentos ultraprocessados é responsável pelas modificações dos padrões alimentares baseados em alimentos in natura e minimamente processados por padrões alimentares que incorporam cada vez mais esses alimentos nas dietas da população 9, 10. Os efeitos do consumo de alimentos ultraprocessados na qualidade da dieta e no estado de saúde da população é amplamente documentado 11, 12, bem como os efeitos deletérios ao meio ambiente 13, 14.

Nesse sentido, modificações nesse cenário são urgentes. Do contrário a desenfreada degradação ambiental causada pelo sistema agroalimentar e a degradação da saúde de populações colocarão (ainda mais) em risco nosso planeta e a vida dos que nele habitam. O sistema agroalimentar precisa sofrer modificações para que se torne sustentável, saudável e promotor da diversidade alimentar e de culturas e dietas locais.

Nesse cenário, a agricultura urbana possui o potencial de atender à essas necessidades e aumentar a disponibilidade e a diversidade de alimentos in-natura e minimamente processados. Para além da função de fornecimento de alimentos, a produção de alimentos dentro e próxima as cidades estimula mudanças nos padrões de consumo, tem efeitos pedagógicos ambientais e alimentares, gera renda e desenvolvimento local e tem efeitos ecossistêmicos, como aumento da diversidade de insetos e polinizadores em ambientes urbanos e redução da perda de alimentos 4.

Além disso, a diversificação na produção de alimentos, particularmente nos sistemas de cultivo e na pecuária, é um meio de aumentar a produtividade, a resiliência às mudanças climáticas e a resistência a pragas e doenças, além de amortecer choques econômicos, melhorar o desempenho ecológico das culturas e conservar a biodiversidade 6.

Todavia, o espaço entre a produção e o consumo efetivo é imenso. Isto é, o aumento da disponibilidade de alimentos por si só não irá garantir o consumo desses alimentos pelos indivíduos e nem a melhoria do estado de saúde e da alimentação da população. O fomento da agricultura urbana perpassa pela conexão entre conhecimentos multidisciplinares e pela articulação com políticas públicas estruturantes e sinérgicas de diferentes campos e estâncias, como saúde, agricultura, planejamento urbano, educação, entre outros.

Recentemente, o decreto nº 11.700, de 12 de setembro de 2023 foi publicado pelo governo federal e instituiu o “Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana” 15. Os Ministérios do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, do Meio Ambiente e Mudança do Clima e do Trabalho e Emprego ficarão encarregados pela execução do programa. Um extenso caminho ainda precisa ser percorrido até a efetiva execução do programa, todavia é um importante e articulado passo no sentido da promoção e do reconhecimento da importância da agricultura urbana para melhoria das condições de vida da população e do planeta.

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Mayra Figueiredo Barata é nutricionista, mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e pesquisadora colaboradora da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis.

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