
O caso de Alagoas expressa a dura realidade dos crimes socioambientais ligados à mineração no Brasil. Tal qual os desastres da Barragem do Fundão pela Samarco, em Mariana, e do Complexo Minerário do Córrego do Feijão pela Vale, em Brumadinho
No dia 3 de março de 2018, moradores do bairro Pinheiro e adjacências em Maceió, Alagoas, foram surpreendidos com um tremor de terra que atingiu a região . As primeiras rachaduras e sinais de afundamento do solo se expandiram ao longo dos meses e preocuparam os moradores da capital. A extração de salgema pela petroquímica Braskem – do grupo Novonor, antiga Odebrecht – ocorria então na região havia mais de 40 anos, contando com 35 poços no subsolo da cidade. Um ano após o evento, é confirmado pelo CPRM (Serviço Geológico do Brasil) que a atividade extrativista feita pela Braskem provocou o afundamento do solo. O tremor de terra que completa, em março de 2023, cinco anos, estabeleceu o primeiro marco temporal da visibilização do crime socioambiental em curso.
Desde então, cerca de 60 mil pessoas foram removidas de suas casas e assistiram seus arredores se transformarem em bairros fantasmas, além de muitas famílias que ainda vivem em regiões de iminente risco e se encontram ilhadas socioeconomicamente , ou seja, não possuem comércio ou serviços públicos ao seu redor. Os bairros de Bebedouro, Bom Parto, Mutange, Pinheiro e regiões do Farol estão hoje em ruínas e representam para os moradores um desfecho desolador de suas trajetórias de vida na região. Das igrejas históricas vazias às praças abandonadas que reuniam milhares de moradores em carnavais e festas populares, caminhar hoje pela região traz a sensação de andar por um mundo que deixou de existir.
A cidade de Maceió concentra um terço da população do estado de Alagoas, cuja taxa de pobreza é a terceira maior do Brasil . As desigualdades sociorraciais se expressam na ocupação desigual do território e na grande incidência de ocupações irregulares e assentamentos precários, regiões afetadas historicamente por desastres associados a chuvas e deslizamentos . A vulnerabilidade socioambiental à qual algumas comunidades já se viam expostas foi ampliada a partir do crime socioambiental que gerou o afundamento do solo na região, perceptível na forma desigual como bairros de classe média foram indenizados e moradores de bairros de classe baixa se viram sem o mesmo apoio . Forçadas a saírem de suas casas, muitas vezes às pressas e sem receber o valor da indenização, milhares de famílias se mudaram para municípios vizinhos ou regiões afastadas do centro da cidade. Esse processo de êxodo urbano se dá junto à especulação urbana na capital, intensificada após o desastre, e que contou no ano de 2021 com a quarta maior alta no preço dos imóveis no país .
Num contexto de mudanças climáticas e exploração de recursos naturais, é importante que o Estado e os seus órgãos reconheçam que é essa população,de pessoas pretas e pardas, já vulnerabilizada, que mais sofre com os prejuízos dessas atividades
Um dos aspectos que tornam o caso ainda mais cruel para as pessoas que perderam suas casas e seu território, é a baixa atenção que é dada das grandes mídias em relação ao caso. Estamos aqui retratando a retirada forçada de 60 mil pessoas por conta da exploração desenfreada de recursos naturais. Este número populacional é mais elevado que centenas de municípios do país, mesmo assim, os moradores continuam a experienciar uma longa demora do processo judicial e revezes para receber indenizações . Este é um caso claro de racismo ambiental, em que determinados grupos são expostos desproporcionalmente às externalidades negativas da exploração ambiental. Os bairros mais afetados e que mais sofrem para receber indenizações, de acordo com dados do IBGE, possuem uma maioria de pessoas pretas, pardas e pobres. Ou seja, o ônus da exploração ambiental recai sobre os mais vulneráveis e os bônus pela venda destes minérios são revertidos em lucro para os seus acionistas. Vale dar um passo atrás e analisar o processo de instalação dessa indústria em Maceió: Em meio à ditadura civil-militar brasileira, a empresa iniciou sua instalação na região, evidenciando a dinâmica então vigente, caracterizada pela relação de cooperação entre Estado e empresariado. Essa parceria se prolongou durante os governos seguintes, envolvendo a falta de regulamentação para a atividade de extração, a omissão de riscos e a arbitrariedade diante da instauração da indústria em Maceió.
Atualmente, a comunidade do Flexal, de origem pescadora, no Bebedouro, retrata bem a dificuldade com a qual os moradores lidam para terem seus direitos respeitados. Há quatro anos eles lutam para serem inseridos num programa de reparação , enquanto sofrem diretamente com os efeitos do esvaziamento dos bairros vizinhos. Os moradores argumentam que vivem em um bairro-fantasma, com falta de serviços públicos, comércio e com imóveis sob risco de desabamento. São frequentes também os casos de moradores que não deixam suas casas nos demais bairros, ainda que se encontrem sob risco, devido à impossibilidade de se restabelecerem em outra região da cidade, considerando os baixos valores das indenizações.
O processo de despejo e desocupação em curso nos bairros afetados pelo afundamento do solo estimula uma discussão sobre os modos como projetos ligados à mineração têm como consequência medidas radicais como a remoção de pessoas , como propõe a socióloga Raquel Teixeira (UFMG) , ainda que se apresentem em narrativas corporativas enquanto decisões inquestionáveis. O risco opera, no caso analisado, enquanto ferramenta de expropriação da população, que hoje em grande medida questiona a necessidade de remoção dos bairros. “Passaram cinco anos do tremor e nenhuma casa caiu”, diz uma moradora do Pinheiro. Para além do fenômeno de afundamento do solo, instalou-se entre a população uma sensação de desconfiança em relação às ações da Braskem e ao futuro dos bairros. O estudante João é um dos muitos que acredita na construção de condomínios de luxo na região de localização privilegiada após o preenchimento das minas de sal-gema e estabilização do solo : “eu que morava aqui não vou ter dinheiro pra voltar a morar”, diz ele.
O caso expressa a dura realidade dos crimes socioambientais ligados à mineração no Brasil. Tal qual os desastres da Barragem do Fundão pela Samarco, em Mariana, e do Complexo Minerário do Córrego do Feijão pela Vale, em Brumadinho , os atingidos em Maceió seguem após cinco anos sem as devidas reparações, e as empresas impunes . Há de se considerar, também, que as violências sofridas excedem um evento em si, como o rompimento de barragem ou tremor de terra, e se desdobram no adoecimento da população, que relata variados problemas de saúde em decorrência da expropriação de suas casas e o tortuoso processo com a justiça . Apesar dos desastres terem ocorrido em regiões diferentes do país, existe um perfil de vítima que os caracteriza: a maior parte da população afetada é composta de pessoas pretas e pardas. Num contexto de mudanças climáticas e exploração de recursos naturais, é importante que o Estado e os seus órgãos reconheçam que é essa população, já vulnerabilizada, que mais sofre com os prejuízos dessas atividades. Além disso, também é necessário que o sistema de justiça aperfeiçoe suas ferramentas de julgamento e investigação para punir os culpados e reparar de maneira célere às populações afetadas por empreendimentos desse tipo. Como no caso de Maceió e da Braskem, cinco anos de espera por justiça e sem casa não é razoável, é descaso.
Luiza Souza é mestranda em sociologia e antropologia pela UFRJ.
Huri Paz é mestrando em sociologia pela USP, coordenador de projetos e pesquisador do Afro-Cebrap.
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