A saúde da população negra segue na ponta do SUS

Jaciane Milanezi
O engajamento das profissionais do SUS à implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra nos ensina que esta conquista também seguirá dentro do Sistema pelas Unidades Básicas de Saúde

Conheci Lélia, assistente social negra de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), quando ela se introduziu a mim ao me ver sentada nos corredores de uma unidade: “Você é a socióloga? Estava te procurando. Soube que você está estudando as nossas questões”. Conheci Sueli, também assistente social negra da Atenção Primária à Saúde (APS), quando ela me observava tentar extrair dados sobre raça/cor dos sistemas de informações num computador: “É preciso sensibilizar os profissionais à violência doméstica no território”. Conheci Lúcia, médica de família, por meio de Lélia. “Mas, você nem é negra”, exclamou diante da pesquisadora branca, antes de me introduzir à sua história de implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).

Assim, abordada pelas profissionais nas unidades, fui introduzida a uma rede de trabalhadoras do Sistema Único de Saúde (SUS) que se agrupam para pensarem uma saúde pública mais alinhada às necessidades das populações negras. Elas tentam implementar ações de equidade racial nas casas das cadastradas, nos territórios, nas unidades, a despeito das metas, das condições precárias de trabalho, dos estigmas sociais em torno das negras, pobres e usuárias do SUS. E, principalmente, apesar das resistências, ou desconhecimento, das categorias profissionais à PNSIPN.

É “nas ruas” que o cotidiano de equidade deve ser sentido pelas mulheres, pretas, pardas, indígenas e usuárias, nos primeiros encontros delas com a saúde pública

Há um conjunto de estudos sobre como a institucionalização da política ocorreu a partir do ativismo institucional dos movimentos de mulheres negras, ora fora, ora dentro do Ministério da Saúde (MS) e das secretarias de saúde deste país. Contudo, o engajamento de profissionais à criação cotidiana da política em equipamentos locais é pouco visibilizado. Desde o ano de 2006, o dia 27 de outubro foi constituído pelos movimentos negros como dia de mobilização e visibilidade da saúde da população negra. Neste 27 de outubro de 2023, proponho uma reflexão sobre como parte das profissionais do SUS se engajam em construir a equidade racial na interação direta com as pessoas usuárias dos serviços primários em saúde e com os profissionais do sistema.

Em sua maioria, elas são mulheres, autodeclaradas pretas e pardas, algumas se tornaram profissionais da saúde pública após alcançarem o ensino superior por meio das políticas afirmativas. Seus percursos de vida são marcados pelas ações dos movimentos de mulheres negras, de diferentes gerações, para a criação de um sistema de saúde adequado às variadas populações negras brasileiras. Há três elementos centrais na forma de engajamento delas à PNSIPN que contribuem para a continuidade da ação: o conhecimento da mesma, a explicação interseccional sobre desigualdade e a transformação da política, localmente.

Primeiro, essas profissionais entendem as repercussões de políticas de equidade racial na melhoria das condições de saúde da população, ao invés de imediatamente rechaçá-las por julgá-las como uma ação racista do Estado. “Tratar preto diferente de branco?", recorrentemente escuto esse questionamento quando estou imersa nas unidades. A política não é de tratamento discriminatório, mas de promoção de serviços adequados às condições sociais das pessoas negras.

Segundo, elas disseminam o conhecimento sobre as condições de saúde a partir dos efeitos sociais entrelaçados de raça, classe, gênero. Por exemplo, é provável que neste outubro de 2023 outros textos reflexivos sintetizem as consequências da pandemia às mulheres negras e pobres. Mas, há também outro efeito para além da clareza que condições sociais nos fornecem vivências distintas durante emergências em saúde. Se entendemos os condicionantes sociais, evitamos reproduzir narrativas essencialistas que atrelam força física, ou fraqueza, a determinados corpos racializados. Por exemplo, também é recorrente escutar que “mulheres negras aguentam dor do parto até as últimas consequências”.

Terceiro, essas profissionais nem sempre implementam ações de equidade a partir dos protocolos da PNSIPN. Na ausência de expedientes cotidianos de equidade dentro das unidades, à exceção do preenchimento do quesito raça/cor nas fichas do SUS, essas profissionais adaptam os serviços a partir do que apreendem entre si e com os movimentos sociais. Em reuniões de equipes, elas sublinham a cor dos casos clínicos tratados, na tentativa de fazer as equipes pensarem o caso em discussão pelos determinantes sociais da raça, classe e gênero. Também, elas sensibilizam as equipes a tratarem articuladamente questões centrais às mulheres negras nos territórios, como a violência doméstica, morte materna e planejamento familiar. Elas questionam as metas de atendimento estabelecidas por Organizações Sociais, Secretarias e Ministério da Saúde que sobrecarregam profissionais na ponta e os impedem de atuarem com qualidade aos temas caros às populações negras. E muitos desses temas viram grupos de discussões liderados por essas profissionais entre as pessoas negras nos territórios em que atuam.

Um efeito do engajamento à PNSIPN é que ele diminui a falta de conhecimento sobre as desigualdades raciais em saúde dentro do próprio SUS e dissemina a política como uma ação de equidade, não de discriminação racial. Ao refletirmos sobre raça e saúde a partir da perspectiva interseccional, melhor criamos ações de focalização nos serviços. É preciso iluminar como a ponta do sistema refina a política. Há um contingente de Agentes Comunitárias, Enfermeiras, Assistentes Sociais, Psicólogas, Médicas e Gestoras que possuem expertise em equidade racial e devem ter espaço na reconstrução da PNSIPN. Após quase 40 anos de construção de um campo circunscrito como Saúde da População Negra, ele se reconfigurará também a partir das unidades com esse novo perfil de profissionais. É “nas ruas” que o cotidiano de equidade deve ser sentido pelas mulheres, pretas, pardas, indígenas e usuárias, nos primeiros encontros delas com a saúde pública, seja na Visita Domiciliar, ou na Sala de Acolhimento dessas unidades. Escutemos as novas burocratas de rua do SUS.

Jaciane Milanezi é socióloga, bolsista de pós-doutorado da FAPESP e coordenadora do projeto “Desigualdades em Saúde: Políticas, Burocracias e Acesso a Serviços Reprodutivos” do AFRO/CEBRAP.

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