A experiência como mulher 'de cor' de Zora Hurston

Poliana Martins e Rosana Castro
Ao narrar de modo incisivo, envolvente e irônico alguns episódios nos quais o racismo presente em diferentes relações interpessoais e institucionais tentou encapsula-lá (e falhou), a autora Zora Hurston impulsiona uma potente reflexão sobre seu corpo “de cor” como transversal e transcendental, convocando-nos a uma reivindicação viva de nossa humanidade em nossa negritude

Zora Neale Hurston (1891-1960), nascida na cidade negra de Eatonville, no estado da Flórida, nos Estados Unidos, conheceu em vida tanto o sucesso quanto o esquecimento relacionado ao seu trabalho como escritora. Tendo suas obras de literatura mais conhecidas do que seus trabalhos como antropóloga, Zora Hurston imprimiu entre os anos 1920 e 1940 (Walker, 1975) – período de publicação de maior parte de sua produção – um estilo de escrita e uma abordagem sobre os negros e negras do país que permitem entendermos tanto algumas das razões de seu relativo desconhecimento, quanto sua recuperação póstuma no contexto estadunidense– sem mencionar a ascendente atenção que vem recebendo no Brasil1.

Em seus escritos, Zora Hurston recusa sistematicamente qualquer apelo à negritude como experiência estacionária ou reclusa, seja por sua associação exclusiva à escravidão, seja pela luta constante pela sobrevivência ao racismo. Em seu romance mais conhecido, “Seus Olhos Viam Deus” (2002 [1937), a personagem principal, uma mulher negra, tem sua trajetória descrita em um arco narrativo calcado na busca pelo amor, pelo prazer e pela autonomia, em cenários inegavelmente atravessados pelo racismo, porém fundamentalmente caracterizados pelas complexas trajetórias de vida de homens e mulheres negras do sul dos Estados Unidos. Por sua insistência na narrativa dos projetos, sonhos, desejos e perspectivas de seus personagens, a obra de Zora Hurston foi duramente criticada por escritores negros da Renascença do Harlem (Gates Jr., [1990] 2002). Afirmativamente, a autora experimenta, demonstra e possibilita vivências negras desnaturalizadas, dinâmicas, destotalizantes, incapturáveis. Reforçando as linhas de força de sua obra, Zora Hurston mostra-se “perversamente polivalente” (Dery, 2020, p. 191) - aqui tomando de empréstimo as palavras de Mark Dery, a quem se atribui a alcunha do termo “afrofuturismo”. Portanto, a tradução e polinização de seu trabalho tem se mostrado tão pertinente.

Em seus escritos, Zora Hurston recusa sistematicamente qualquer apelo à negritude como experiência estacionária ou reclusa, seja por sua associação exclusiva à escravidão, seja pela luta constante pela sobrevivência ao racismo

O ensaio “How it feels to be colored me”, publicado originalmente em 1928, no periódico The World Tomorrow, denota essa proposta político-literária de Zora Hurston de modo pulsante, proposta que ora reivindicamos afrofuturista. Em ato vivido e na ação da escrita, Zora Hurston experimenta com uma sofisticada tecnologia de recomposição de relações, de abertura de possibilidades e de embaralhamento temporal e simbólico. Neste trabalho, a autora retoma sua experiência de nascer e crescer em uma cidade negra. Uma cidade negra: um tempo-espaço imaginativo fundamental na ficção científica negra contemporânea, é a referência vivida de Zora Hurston. Em Eatonville, os brancos eram reconhecidos, sobretudo, pela sua condição de forasteiros de passagem. Mesmo como passageiros, suas interações com Zora, aquela que fica na fronteira dando boas-vindas aos turistas, eram marcadas pela tentativa de fazê-la estacionar na posição de atração. Por isso, davam-lhe moedas por contar histórias, dançar ou cantar. Ali tentavam capturá-la, ali mesmo a perdiam: como ironiza Zora Hurston, não haveria pagamento possível para fazê-la interromper atividades tão prazerosas. Ao subverter o assujeitamento maquínico das expectativas dos brancos, que nela buscavam entretenimento, Hurston transforma as moedas em componente de seu próprio divertimento.

Desse espaço onde a troça e a torção das pretensões dos forasteiros brancos pareciam constitutivas das interações com eles, já que ali tudo “pertencia” Zora e à Zora, passamos a interações crescentemente tensas, nas quais as diferenças raciais passaram a se constituir de um jeito diferente. A experiência nodal é sua ida para escola em Jacksonville, aos treze anos: já ao desembarcar na cidade, percebe-se não mais como Zora, mas como “pessoa de cor”2. A partir dali brancos e negros não mais se dividem como passageiros ou autóctones – a epidermização colonial descrita por Frantz Fanon (2008) se atualizara na experiência vivida.

No entanto, a negritude não lhe parece como tragédia – o lamento por sua cor e sua história não lhe pertencem. Não se trata de deixar de reconhecer o absurdo da escravidão e de sua atualização no racismo cotidianizado, mas de recusar-se a ter sua história e sua vida enclausuradas nessa narrativa. Zora Hurston sequer tinha tempo para isso: “estou muito ocupada afiando minha faca de ostra”. O que vemos no referido ensaio é justamente o exercício de afiar e usar essa faca.

Em língua inglesa, a palavra usada pela autora para se referir à ação de afiar é a mesma que lhe serve de adjetivo para descrição de cenas de vivência de mulher de cor: “sharp”. Para tratar, portanto, da questão que intitula o ensaio, Zora Hurston realiza o exercício duplo de abranger e aprofundar complexidades, delineando uma narrativa afiada ao mesmo tempo em que abre um corte no couro do racismo e lhe põe em exposição. E, ao fazê-lo, ironiza-o.

No retorno de um trânsito, entre diversas experiências em que Zora Hurston interage crescentemente com o mundo dos brancos – dentre os quais se destaca a Barnard College, onde se formou em antropologia - ela conta uma história sobre como levou um amigo branco a um clube de jazz negro: enquanto a banda toca, ela entra em transe e é levada para outro tempo-espaço. À medida que a banda performa, Zora põe em perspectiva suas percepções e aquelas do universo branco representado pelo colega. Ela descreve uma selva e vê a si mesma pintada como um membro de uma tribo “primitiva”, o mesmo tipo de caracterização "selvagem" que habita o imaginário museológico dos brancos (Hurston, [1950], 2019). Tal narrativa mistura-se às emoções contadas de modo vívido a respeito do que a autora sente e percebe ao ouvir a música. Para os brancos, a selva da qual procuram se distanciar; para Zora e a banda, o êxtase sensorial comunicativo.

O fim da música e o retorno da experiência musical são marcados por um reencontro surpreendente entre Zora e seu amigo forasteiro. Ele tamborilava impassível sobre a mesa, enquanto ela havia dançado, vibrado e gritado ao sabor das bolhas coloridas tocadas pela banda. Ele pálido, ela toda cor. Sentir-se de cor era uma experiência que ele jamais saberia, jamais alcançaria, preso em sua brancura, sua performance de pretensa civilidade, seu imaginário de museu. A provocação que Zora Hurston lança, contudo, não é só para os brancos, mas também para nós, negras e negros. Ao recusar sofisticadamente a romantização espetacularizada da sobrevivência ao racismo, Zora Hurston convoca a uma reivindicação viva de nossa humanidade em nossa negritude.

Nem universal e nem excêntrica, nem pitoresca e nem excepcional – para evocar o vocabulário de outro ensaio da autora (Hurston [1950] 2019) – Zora Hurston não se coloca como exemplar e nem a exemplo da raça. De cor como ela, é ser uma pessoa, ser humana, ser "o eterno feminino com seu colar de contas”, ser “cósmica” - como a autora escreve no ensaio (Hurston, 1928). É pertencer à Eatonville, à Barnard, ao porão frio e colorido do jazz. Jamais ao tempo congelado, à raça biológica, à tragédia inescapável, à narrativa incolor e descorporificada. Com Zora Hurston, lemos e miramos nossas vivências, nossa arte, nossas emoções, nossa história e nossa imaginação como lugares-corpos que transpassam e transcendem a cronologia branca ocidental. E assim nos pertencem. Agora e sempre.

Poliana Martins atua na área de comunicação e estudos da linguagem. Possui licenciatura e bacharelado em letras pela UnB (Universidade de Brasília) , especialização em linguística (UFMG) e MBA em marketing (USP).

Rosana Castro é antropóloga e professora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa temáticas relacionadas às tecnologias médicas e às interfaces entre racismo e saúde.

Agradecemos ao professor doutor Matheus Gato pela leitura atenciosa deste texto.

Os artigos publicados na seção Opinião do Nexo Políticas Públicas não representam as ideias ou opiniões do Nexo e são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Parceiros

AfroBiotaBPBESBrazil LAB Princeton UniversityCátedra Josuê de CastroCENERGIA/COPPE/UFRJCEM - Cepid/FAPESPCPTEClimate Policy InitiativeMudanças Climáticas FAPESPGEMAADRCLAS - HarvardIEPSISERJ-PalLAUTMacroAmbNeriInsper