A fome está presente no Brasil, na zona rural e nas cidades, nas metrópoles e nos pequenos vilarejos, de Norte a Sul do país: desde a sua forma mais grave, quando as pessoas não têm condições que garantam sequer uma refeição diária, passando pelo acesso intermitente às refeições, até aqueles casos em que, embora se alimentem, estão mal nutridas. As nuances do problema são as mais variadas, algumas urgentes, exigindo medidas rápidas e emergenciais; outras que só serão combatidas em um processo mais longo de provisão de infraestrutura social e educação para todos. Sete décadas após a publicação de “Geografia da Fome”, de Josué de Castro, algumas de suas constatações permanecem atuais, como a grande disparidade da situação alimentar entre as regiões brasileiras. No entanto, novos desafios foram adicionados: hoje coexistem a desnutrição, a deficiência de micronutrientes e a obesidade, além da dificuldade de se lidar com os eventos climáticos extremos que também impactam negativamente a segurança alimentar.
Formado pela Reitoria da USP (Universidade de São Paulo), o grupo de trabalho “Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome”, formado por 12 docentes e 14 pós-graduandos e pós-doutorandos das áreas de ciências biológicas e da saúde, ciências humanas, sociais aplicadas e exatas, após cerca de 16 meses de trabalho, finalizou suas atividades apresentando 39 propostas de políticas públicas de promoção da segurança alimentar. Foram conduzidos estudos com bases de dados nacionais, representativos da população brasileira, estudos empíricos, de natureza qualitativa e quantitativa, e estudos de caso nos municípios de Piracicaba e Santos e no distrito de Grajaú, uma das áreas de maior vulnerabilidade do município de São Paulo. Estas pesquisas buscaram não somente apontar os problemas na implementação das políticas públicas, mas também identificar onde estão seus gargalos.
A Universidade tem um papel a desempenhar em várias frentes, entre elas, a geração de conhecimento e de alternativas em conjunto com os demais atores da sociedade, bem como a formação de profissionais qualificados e com uma visão ampla e sistêmica do problema
Um aspecto fundamental, evidenciado e expresso no relatório final, é que a transparência e a participação da sociedade civil são essenciais para melhorar a gestão de recursos humanos e financeiros e que os gestores públicos devem reconhecer que o controle social é um direito dos cidadãos e uma ferramenta de promoção da eficácia das políticas públicas. Ao mesmo tempo, é urgente que a sociedade civil restabeleça sua força organizacional para usar as ferramentas de controle e fiscalização do poder público. Ainda há um longo caminho pela frente: nos estudos empíricos realizados, chamou a atenção o desconhecimento das políticas em vigor e dos seus direitos de acesso pelos grupos alvo.
No mapeamento das políticas públicas conduzidas no município de São Paulo verificou-se que existiam iniciativas de promoção da segurança alimentar e de combate à fome sendo implementadas por diversas secretarias, porém, havia falta de articulação nas ações. No estudo qualitativo no Grajaú, as dificuldades de acesso aos alimentos, em particular a uma alimentação adequada e com qualidade, foram recorrentemente relatadas (em particular devido à priorização do pagamento de contas como aluguel, água e energia elétrica). As famílias do Grajaú refletiram os problemas de consumo de alimentos presentes em parte da população brasileira: baixo consumo de produtos de origem vegetal, especialmente, frutas, verduras e legumes e baixa qualidade nutricional.
No diagnóstico macroeconômico realizado, reforça-se a constatação que a probabilidade de insegurança alimentar está diretamente associada à pobreza e às desigualdades regionais. Além disso, os preços dos alimentos estão vinculados a uma estrutura globalizada de mercado, sendo que os preços internos dos alimentos estão em linha com os preços e custos dos mercados internacionais, e, embora os preços reais históricos dos alimentos básicos no Brasil não estejam em tendência de alta, há ciclos e oscilações, o que abre espaço para políticas de estoques de alimentos.
Motivados para continuar o trabalho iniciado pelo GT, foi elaborada proposta da criação de um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, aprovada pelo CNPq. Com o nome abreviado de INCT “Combate à Fome”, é formado por pesquisadores de universidades de todas as regiões do país e com um escopo ampliado: além da pesquisa sobre a segurança alimentar, pretende também atuar na formação de quadros e em atividades de extensão, tendo os sistemas alimentares sustentáveis e o direito humano à alimentação adequada como referenciais teóricos.
A erradicação da fome no Brasil e a garantia dos direitos fundamentais são uma possibilidade concreta, não uma utopia. Elas demandam não apenas mudanças nos sistemas alimentares, mas também, o estabelecimento do combate à insegurança alimentar e à pobreza como a prioridade em nosso país
A modernização dos processos produtivos e distributivos, a mudança no ritmo de vida e nos hábitos da população, os ambientes alimentares urbanos que não favorecem o acesso e escolhas de alimentos saudáveis, além da falta de renda, agravaram os problemas nutricionais e de saúde de longa data no Brasil. Os desafios são inúmeros e em muitas frentes. Nesse sentido, é objetivo deste INCT utilizar instrumentos modernos de comunicação, que estão sendo democratizados rapidamente para a população em geral, como uma oportunidade para ampliar o acesso dos cidadãos à informação e diminuir as desigualdades. Ainda, empregaremos a inteligência artificial, cada vez mais presente no nosso cotidiano, para proporcionar aos diferentes atores ferramentas de análise de dados que auxiliem na tomada de decisões.
A erradicação da fome no Brasil e a garantia dos direitos fundamentais são uma possibilidade concreta, não uma utopia. Elas demandam não apenas mudanças nos sistemas alimentares, mas também, o estabelecimento do combate à insegurança alimentar e à pobreza como a prioridade em nosso país. Nesse sentido, é fundamental o comprometimento dos poderes públicos, da sociedade civil, das organizações não-governamentais, das empresas e da Universidade. A Universidade tem um papel a desempenhar em várias frentes, entre elas, a geração de conhecimento e de alternativas em conjunto com os demais atores da sociedade, bem como a formação de profissionais qualificados e com uma visão ampla e sistêmica do problema.