É preciso fortalecer a coprodução entre cientistas e gestores públicos

Fernanda Pardini, Patricia Ruggiero e Renata Pardini
O projeto Biota Síntese foi pensado para ser um espaço permanente de aprendizado e articulação de conhecimentos entre cientistas e gestores públicos, com vistas a subsidiar políticas públicas atreladas a desafios socioambientais do estado de São Paulo

Muitos dos grandes desafios atuais da humanidade, como as questões socioambientais relacionadas às mudanças climáticas, envolvem problemas complexos cujas soluções perpassam diversas áreas do conhecimento científico e vão além deles. O enfrentamento desses desafios demanda também conhecimentos experienciais, técnicos e estratégicos, relacionados - entre outros - às possibilidades práticas, legais e políticas, que não fazem parte do arcabouço de conhecimento trazido pelos cientistas, mas sim pelos gestores. Além disso, a tomada de decisão e formulação de políticas passa por uma negociação dos múltiplos interesses e valores na sociedade que não cabe aos cientistas, mas depende de acordos políticos. Assim, apesar do consenso na academia a respeito da importância de uma ciência mais engajada, que dê suporte a soluções para problemas da sociedade, os caminhos para que isso efetivamente aconteça na prática ainda são muito desafiadores.

Embora cientistas e gestores interajam frequentemente, essa relação comumente ocorre de maneira pontual e fragmentada, através da participação de cientistas em colegiados/conselhos consultivo ou da contratação de consultorias técnico-científicas para atender a demandas específicas, sem oportunidades estruturadas para diálogo colaborativo, aprendizado e cocriação entre as partes. Este tipo tradicional de interação unidirecional - gestores formulam demandas respondidas por pesquisadores - mantêm desacopladas as práticas, a comunicação, as políticas institucionais e as culturas científicas e dos órgãos de gestão governamentais.

Na contra-corrente, vem ganhando visibilidade a proposta de unir diferentes atores sociais, incluindo gestores e pesquisadores, em espaços colaborativos de articulação de conhecimentos para definição conjunta dos problemas e geração de soluções viáveis, legítimas e com suporte científico, em um processo comumente chamado de coprodução. Alinhadas a essa tendência, as agências de fomento à pesquisa já têm aberto editais e linhas de financiamento que consideram essa interação colaborativa de cientistas com outros atores. Embora excelente notícia, este é um primeiro passo que não garante o sucesso destes projetos.

O Projeto Biota Síntese, por exemplo, foi pensado para ser um espaço permanente de aprendizado e articulação de conhecimentos entre cientistas e gestores públicos, com vistas a subsidiar políticas públicas atreladas a desafios socioambientais do estado de São Paulo. Cerca de um ano e meio após o início formal do projeto, parte de seus integrantes se reuniu para refletir sobre os desafios encontrados no processo de coprodução e como enfrentá-los. A partir de dinâmicas de reflexão individual e coletiva baseadas em técnica da psicologia para identificar formas distintas de pensar temas complexos, o grupo reconheceu entraves e acordou formas para contorná-los.

Vem ganhando visibilidade a proposta de unir diferentes atores sociais, incluindo gestores e pesquisadores, em espaços colaborativos de articulação de conhecimentos para definição conjunta dos problemas e geração de soluções viáveis e com suporte científico, em um processo chamado de coprodução

O grupo reconheceu que a rotina de trabalho e suas atividades, as linguagens usadas, os produtos gerados e a forma como os cientistas e gestores são avaliados nas suas carreiras e instituições são muito diferentes, e geram expectativas por vezes conflitantes sobre o processo de coprodução. Cientistas precisam de estudo e aprofundamento e se debruçam sobre investigações meticulosas para avançar o conhecimento científico, sendo prioritariamente avaliados pelos artigos científicos que produzem - essa avaliação é especialmente relevante para pesquisadores mais jovens, sem vínculo empregatício que dependem de renovação de bolsas e da construção de um currículo robusto para galgar futuras posições. Gestores públicos sofrem enorme pressão para atenderem, em tempo mínimo, demandas urgentes que afetam a vida de milhares, por vezes de milhões, de pessoas. Sofrem também com mudanças de rumo e rompimento de projetos e programas decorrentes da rotatividade de seus governantes.

Dessa forma, é preciso reconhecer que há, não apenas diferentes tipos de conhecimento, mas também perspectivas e habilidades distintas, e assimetrias de risco e poder entre os envolvidos em processos de coprodução. Esse reconhecimento coletivo é o primeiro passo para construção de respeito e confiança e criação de espaços seguros para expor e solucionar conflitos, alinhar expectativas e acordar soluções de maneira que todos possam contribuir e aprender.

A construção desse diálogo depende diretamente do engajamento dos atores, o que pode envolver reuniões frequentes e imersões mais longas. Tais ações demandam não apenas esforço intelectual, mas também enorme empenho logístico e administrativo. Assim, um grande desafio de projetos de coprodução é garantir o apoio logístico e administrativo das instituições de pesquisa e órgãos de gestão pública para a realização destas atividades. É fundamental também que estas instituições reconheçam estes ambientes de interação como espaços legítimos de trabalho e capacitação, que merecem tempo e dedicação, e considerem sua construção um diferencial positivo no currículo de seus participantes.

Além da valorização das atividades, muitos produtos gerados na coprodução, como notas técnicas e sumários executivos, não contribuem para os tradicionais índices de sucesso na academia, gerando impasses difíceis principalmente para a participação de pesquisadores em início de carreira. Portanto, se a academia deseja contribuir de maneira mais efetiva para as questões sociais, é fundamental que as agências de fomento e universidades repensem a forma de avaliação de seus profissionais, incluindo em seus índices de produção acadêmica a experiência e produtos decorrentes da coprodução.

Por fim, a experiência do Projeto Biota Síntese também aponta para a importância do envolvimento de uma equipe de profissionais de comunicação e mediação desde o início do projeto, para que possam contribuir no planejamento e facilitação de dinâmicas que favoreçam a reflexão e o fortalecimento das interações e que levem os conhecimentos e discussões levantadas para os diferentes públicos interessados, como, por exemplo, gestores públicos não envolvidos no projeto e a população influenciada pelas políticas públicas estabelecidas.

Fernanda Pardini é bióloga, mestre em educação e especialista em jornalismo científico. Tem experiências diversas em ensino e divulgação científica, incluindo cinco anos na Divisão Cultural do Instituto Butantan. Atualmente atua na divulgação do Projeto Biota Síntese.

Patricia Ruggiero é doutora pelo Departamento de Ecologia da USP. Tem especialização em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e durante o doutorado esteve como pesquisadora visitante na escola de políticas públicas da Universidade Duke, nos EUA. Trabalhou por 14 anos na área ambiental, nos setores privado, governamental e no terceiro setor. Atualmente, é pesquisadora do Biota Síntese no Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP), trabalhando na coprodução de políticas públicas ambientais para o estado de São Paulo.

Renata Pardini é docente e pesquisadora do Instituto de Biociência da USP, onde coordena o Grupo de Pesquisa em Ciência da Conservação. Participa de dois grandes projetos com foco em coprodução - Biota Síntese e INCT-INTREE, tem experiência em processos de coprodução com gestores públicos e comunidades locais, e pesquisa formas de aproximar a ciência da prática.

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