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OPINIÃO

Racismo sistêmico e o impacto das políticas de ação afirmativa no Brasil

Silvio Almeida 19 de Maio de 2022 (atualizado em 28 de Dezembro de 2023)

Política pública não foi importada dos Estados Unidos e guarda características próprias da situação nacional

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É absolutamente impossível compreender a formação social brasileira sem entender a questão racial. E não apenas isso: acredito ser impossível compreender a atual situação mundial, do ponto de vista da economia e da política, se não entendermos o papel do sistema racial.

Para melhor analisarmos, divido minha reflexão em quatro pontos.

O primeiro é entender o que é racismo sistêmico. O segundo, a relação entre racismo sistêmico e ações afirmativas. O terceiro vai um pouco além: racismo sistêmico e ações afirmativas no Brasil – minha tese é que as ações afirmativas no Brasil não são meramente importadas dos Estados Unidos. É importante que isso seja compreendido: ação afirmativa no Brasil é parte de uma experiência brasileira única, que está relacionada ao processo histórico e à formação da sociedade brasileira. Por fim, o quarto ponto se volta ao debate sobre ações afirmativas e as atuais disputas na política brasileira.

Racismo sistêmico

O que o termo racismo sistêmico significa? Vou ser direto: em minha opinião, racismo sistêmico é um pleonasmo. Eu considero, com o suporte de uma extensa literatura, que racismo é sempre sistêmico. Racismo é um processo, não apenas um ato ou um conjunto de atos. Racismo é o processo em que se reproduzem condições sociais que atribuem vantagens e desvantagens para pessoas pertencentes a grupos racializados. Vantagens econômicas e políticas dependem de sua identidade racial.

Há várias maneiras de se entender o racismo. De maneira geral, as pessoas entendem o racismo como um comportamento individual. Mas se o racismo é um sistema, ele deve ser entendido como uma concepção institucional ou estrutural. Pois, a depender das diferentes concepções, é possível definir as maneiras utilizadas para combater o racismo: educação, ações legais civis ou criminais, reformas institucionais – como ações afirmativas –, e mudanças econômicas. A concepção de racismo é o que definirá a forma de organização contra o racismo.

Eu meu livro “Racismo Estrutural” (Pólen, 2019) eu defino racismo como uma forma sistêmica de discriminação baseada em raça, que se manifesta através de práticas conscientes ou inconscientes, culminando em desvantagem ou privilégio para indivíduos, a depender de qual grupo racial eles pertencem. Assim, racismo sistêmico é um processo com condições de autoridade civil e privilégios que são distribuídos entre grupos de diferentes raças, produzido nas esferas da política, economia e relações diárias.

Falar sobre racismo é falar sobre um sistema racializado. E para que um sistema racializado exista, o papel das instituições é fundamental. As instituições são responsáveis por estabilizar o sistema racializado e, dessa maneira, normalizar o racismo

Falar sobre racismo é falar sobre um sistema racializado. E para que um sistema racializado exista, o papel das instituições é fundamental. As instituições são responsáveis por estabilizar o sistema racializado e, dessa maneira, normalizar o racismo. Escolas, instituições legais, a mídia: são elas as responsáveis por oferecer a ideologia necessária para a naturalização do sistema racializado. Isso explica porque o racismo pode se apresentar de maneira velada ou explícita. Isso depende das circunstâncias, dos momentos de crise e da soberania das instituições. A maneira como o racismo se apresenta no dia a dia varia a depender do contexto social. O racismo velado se apresenta como a falta de representação das pessoas negras: no mercado de trabalho, no Congresso, e em posições importantes. E há racismo institucional no sistema penal e em políticas governamentais no Brasil também.

Como Frantz Fanon nos ensinou, a sociedade contemporânea criou disfarces para o racismo de uma maneira tal que é até mesmo possível existir racismo sem que existam racistas. Cito a boa expressão de Eduardo Bonilla-Silva: “o racismo está presente no disparo da arma que tira a vida das pessoas negras, mas também nas moradias precárias, no desemprego e na fome causada por medidas políticas e econômicas que os fazem virar as costas para as desigualdades raciais. Em geral, nosso sistema legal repudia outras formas de racismo, mas são raros os instrumentos políticos e legais que permitem oposição real a formas de discriminação”.

Antes de se falar de ações afirmativas mais especificamente, também é preciso entender como o racismo é um processo histórico e político. Histórico porque ele se manifesta de diferentes maneiras, a depender do contexto. Ainda que o racismo, como nós o entendemos hoje em dia, tenha uma relação direta com o processo de formação da sociedade moderna, é muito importante compreender as especificidades históricas de cada país. A história do racismo no Brasil e o racismo nos Estados Unidos estão conectados pelo comércio de escravizados e pelo colonialismo. Mas Brasil e Estados Unidos têm diferentes trajetórias, diferentes economias e culturas. E o resultado é: Brasil e Estados Unidos têm diferentes processos de racialização. O surgimento de um sistema racializado depende da criação de um processo de racialização, e os processos de racialização são dinâmicas de classes sociais, formação cultural, instituições políticas etc.

A relação entre racismo sistêmico e ações afirmativas

Baseado na ideia de processo de racialização, agora sim é possível falar sobre ações afirmativas, uma vez que estamos prontos para entender o racismo em uma perspectiva sistêmica. Ou seja, racismo como parte das instituições; racismo como um elemento central de poder; racismo como dominação. O grupo dominante institucionaliza seus interesses impondo regras, comportamentos e modos de racionalidade. Racismo não é uma irracionalidade, é uma forma de estabelecer meios de racionalização no espaço social. Então, a discriminação e os parâmetros baseados em raça para discriminar pessoas servem para manter a hegemonia de um grupo racial no poder. Estou falando em determinar a cultura, os modelos estéticos, as práticas de poder que um grupo particular utiliza para se tornar o horizonte da sociedade como um todo.

Baseado na ideia de racialização, do processo de racialização, ações afirmativas como conhecemos são medidas institucionais que têm como objetivo promover a igualdade. São arranjos institucionais desenhados para reduzir as vantagens produzidas pelo sistema racializado.

Racismo sistêmico e ações afirmativas no Brasil

Se alguém se pergunta quais são as diferenças entre os processos de racialização no Brasil e nos Estados Unidos, e a diferença entre as pessoas negras nos Estados Unidos e no Brasil, a primeira coisa para a qual devemos olhar é a porcentagem da população. A demografia é muito importante: ela é crucial para compreendermos a dinâmica da política, a dinâmica da economia, o papel das ações afirmativas, e as diferenças entre ações afirmativas no Brasil e nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, 13% das pessoas são afro-americanas. No Brasil, 56 % da população é negra. Mais pessoas negras exigem que mais instrumentos de dominação sejam mobilizados. Para manter a desigualdade no Brasil, é necessário usar mais violência, mais violência estatal. O impacto das ações afirmativas dependem, como dito, do contexto social e do processo de racialização. E no caso do Brasil, as ações afirmativas são muito importantes. Elas tiveram um enorme impacto não apenas na educação universal, onde foram massivamente aplicadas, mas na sociedade brasileira em geral. As ações afirmativas no Brasil impactaram no imaginário social. Foi um impacto cultural. Um imenso e relevante impacto social. Essa conclusão é parte de um artigo que o grupo de pesquisa liderado por mim e o Professor John French, da Duke University, estamos produzindo.

O impacto da implementação das ações afirmativas no Brasil foi muito maior que nos Estados Unidos, dadas as características do racismo brasileiro. Eu uso quatro pontos para dar suporte a essa afirmação:

  • A adoção das ações afirmativas no Brasil veio tarde, após décadas de debates públicos, globalização dos movimentos sociais e grande resistência de certos setores da sociedade. Foi uma batalha que em 2011 foi decidida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) na famosa ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 186. Nessa decisão, o STF, de maneira unânime, decidiu pela compatibilidade das ações afirmativas baseadas no critério racial com a constituição brasileira. Foi um julgamento que mobilizou a sociedade, com a participação ativa de acadêmicos, intelectuais, artistas e organizações da sociedade civil.
  • A dinâmica racial no Brasil produziu um discurso que se alimenta da negação da existência do racismo. Essa é uma característica muito importante do racismo brasileiro: a negação. É inacreditável, mas algumas pessoas no Brasil digam que o racismo não existe. A contradição: alguns dizem que raças existem, mas não existe racismo; alguns dizem que racistas existem, mas não existe racismo. Em outras palavras: existem raças, existe quem discrimine outras pessoas, mas um sistema racializado não existe! A negação é a principal característica da sociedade brasileira quando falamos sobre racismo. Ainda que seja um dos países mais violentos no mundo e as estatísticas mostrem que a população negra é a mais afetada por problemas sociais, há uma tentativa de afirmar a inexistência de um sistema racial. É uma forma de negar a existência de um sistema de privilégios entre os brancos. Afastar-se do debate racial é uma maneira de bloquear questões sobre arranjos políticos, econômicos e culturais que sustentam a desigualdade. Portanto, reconhecer a necessidade de ações afirmativas é quebrar o silêncio em torno das estruturas raciais da desigualdade brasileira.
  • Pela primeira vez na história brasileira, o racismo foi levado ao debate público como uma questão política e coletiva, não apenas como uma questão moral e individual. A questão não era mais como alguém podia discriminar uma pessoa negra, mas como um país inteiro se volta contra as pessoas negras. Ou seja, o debate em torno das ações afirmativas muda de uma maneira significativa os termos do debate. Os termos do debate não giram mais em torno da moral, mas sobre política, poder, organização social, organização da economia brasileira, desigualdade.
  • Tornou-se evidente como as universidades desempenham um papel fundamental sobre o conhecimento em torno do processo de racialização. Uma afirmação forte: a universidade no Brasil já foi um espaço para criar pessoas brancas. Parte importante do processo de racialização, dada a dinâmica de raça e classe no Brasil, universidades públicas foram sempre usadas como espaço de legitimação do poder político e ocupação de instituições legais. Se olharmos a foto de uma corte no Brasil, veremos que a maioria dos juízes são brancos, e boa parte deles se formou em universidades públicas. Ou seja, as universidades no Brasil são formas de legitimar pessoas brancas, a dominância branca. E essa legitimação tem componentes raciais, uma vez que ser branco tem relação com ter frequentado uma universidade considerada de melhor qualidade. Universidades sempre foram fundamentais no processo de criação de brasileiros brancos. Quando negros começam a ocupar esses espaços e os movimentos negros brasileiros tornaram essa ação uma estratégia, eles estão perturbando um importante instrumento de legitimação de desigualdade social. No Brasil, o sistema educacional é uma parte importante do processo de reprodução de desigualdades. Por essa razão, ações afirmativas no Brasil têm um impacto muito maior que nos Estados Unidos. Além do mais, é preciso que seja dito que o Brasil adotou ações afirmativas na forma de cotas raciais, reserva de vagas, o que não é permitido nos Estados Unidos. E isso se explica pela adoção tardia de políticas de ações afirmativas e também pelo tamanho da população negra no Brasil.

A ação afirmativa brasileira não é algo importado dos Estados Unidos. O problema no Brasil é diferente. A luta no Brasil é diferente. O tempo histórico no Brasil é diferente. Nós precisamos de cotas como parte de nossa estratégia de luta contra o sistema racializado. O debate sobre sistemas raciais, sobre o que deve ser branco, o que deve ser negro, nos Estados Unidos e no Brasil, é muito diferente. As comparações entre movimentos negros no Brasil e Estados Unidos mostram as diferenças.

Por fim, como está o debate hoje em dia no Brasil depois da adoção da política de cotas raciais? São dez anos de muitas mudanças e muitas conquistas. Isso não pode ser negado. As ações afirmativas no Brasil foram uma vitória dos movimentos sociais negros. Eles venceram parte dessa batalha contra o racismo.

O impacto vai além do número de estudantes e da presença de pessoas negras no ensino superior. As cotas raciais mudaram o debate político e trouxeram novas formas de luta contra o racismo no Brasil. Elas mudaram o debate público não apenas sobre racismo, mas também sobre desigualdade, sobre democracia – é importante apontar a ligação entre racismo e democracia no Brasil.

As cotas também geraram conflitos e resistência, especialmente se pensarmos que as ações afirmativas levaram a uma revisão legal. É preciso lembrar que no Brasil estamos sob um governo autoritário e um Congresso conservador, cuja grande maioria dos membros não têm qualquer compromisso com os pobres e as minorias.

Em minha opinião como jurista, a questão não é a renovação das políticas de ação afirmativa, mas como adaptar as necessidades da população negra no Brasil, depois da pandemia, da crise econômica e da destruição da universidade pública brasileira. Em minha opinião, a lei não fala em renovação, mas em supervisão e avaliação.

Ações afirmativas e as atuais disputas na política brasileira

Diante desse cenário, os desafios que se colocam hoje em dia para as ações afirmativas envolvem três questões fundamentais. A primeira é: como é possível melhorar o monitoramento dos mecanismos de ação afirmativa? A segunda: como garantir a permanência de estudantes negros e negras nas universidades? E aqui eu me refiro especificamente às condições econômicas. A situação das bolsas de estudo no Brasil é trágica. Como entender ações afirmativas sem entender as questões econômicas reais que permitam que os estudantes permaneçam nas universidades? É trágico o fato de que quando pessoas negras e indígenas estão chegando à universidade, a universidade esteja sendo destruída. A terceira e última questão é: as cotas devem permanecer porque os objetivos ainda não foram atingidos? Toda política pública tem um objetivo. E o principal objetivo das cotas raciais no Brasil ainda não foi atingido. Apesar dos avanços, muito ainda falta a ser feito. E sejamos claros: políticas de ação afirmativa são apenas o passo inicial. Sua adoção é sinal de que a luta contra o racismo produziu efeitos que precisam ser combinados com distribuição de renda e fortalecimento da participação democrática de minorias. É muito importante compreender esse contexto.

Ações afirmativas são uma política pública que serve a toda sociedade brasileira. Brancos e negros.


Silvio Almeida é doutor em direito pela Universidade de São Paulo. Professor na Fundação Getulio Vargas e na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é diretor do Instituto Luiz Gama. É autor de “Racismo Estrutural” (Pólen Livros, 2019). Atualmente, é professor visitante na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.

Este texto foi originalmente escrito em inglês e traduzido por Rodrigo Simon e Lucas Prates.


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