É consenso que a Lei de Cotas (12.711/2012) apresentou forte impacto sobre o perfil discente das instituições federais de ensino superior no Brasil. Entretanto, será que seus resultados foram homogêneos entre todos os cursos de graduação?
Para responder essa questão, cruzamos duas bases de dados administradas pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira): o Censo da Educação Superior e o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Assim, compusemos um retrato do perfil discente das instituições federais antes e depois da Lei de Cotas, levando-se em conta os critérios de delimitação de beneficiários para cada uma das instituições e cursos. Em texto anterior, apresentamos dados sobre as instituições. Aqui, vamos analisar diferenças entre os cursos de graduação, com especial atenção aos estudantes oriundos do ensino médio público e aos pretos, pardos e indígenas.
No painel de gráficos, vê-se a proporção de estudantes que frequentaram o ensino médio na rede pública (Gráfico 1) e de pretos, pardos e indígenas egressos do ensino médio público (Gráfico 2), por curso de graduação das instituições federais entre 2012 e 2016. Os cursos estão classificados em ordem decrescente do percentual em 2016. No eixo horizontal, quanto mais à direita, maior a presença de estudantes do respectivo perfil.
Em linhas gerais, o padrão observado nos dois gráficos é similar. Ambos acusam um deslocamento dos percentuais para os valores mais elevados, evidenciando um aumento da participação dos dois grupos beneficiários da política de cotas em quase todos os cursos.
Retrocessos, não houve em nenhum; na pior das hipóteses, alguns cursos permaneceram estagnados: pedagogia, matemática/estatística, letras, história/geografia, serviço social e ciências sociais/filosofia apresentaram percentuais de ingressantes oriundos do ensino médio público similares em 2012 e em 2016. Em todo caso, com percentuais superiores a 50% do total de ingressantes, conforme preconiza a Lei de Cotas.
Há dois resultados que valem a pena ser ressaltados. O primeiro deles é que as transformações foram mais pronunciadas quanto menor o patamar de inclusão prévio de um dado curso. Isso se percebe pela distância entre a marca de 2012 e a de 2016, crescente conforme se desce verticalmente os gráficos. Ou seja, cursos como os mencionados no parágrafo anterior representam carreiras já bastante acessíveis e que, portanto, tiveram seu perfil discente pouco modificado após a adoção integral da política de cotas. O mesmo não pode ser dito para os cursos de medicina, relações internacionais, odontologia, direito, engenharia e psicologia, nos quais se observa um grande hiato entre o antes e o depois.
O segundo resultado é que as variações são maiores quando se considera o critério racial. Em outras palavras, a distância relativa entre as marcas de 2012 e de 2016 é maior no gráfico 2 do que no gráfico 1. Isso reforça uma conclusão que temos enfatizado em nossos estudos: os estudantes pretos, pardos e indígenas de escola pública foram os principais beneficiários da Lei de Cotas. Isso se observa bem – mas não exclusivamente – no curso de odontologia. Entre os dois anos considerados, há um crescimento relativo de 64% na participação de egressos do ensino médio público. Contudo, esse crescimento é de 125% entre pretos, pardos e indígenas do ensino médio público.
O leitor pode estar se perguntando: por que isso acontece? Há três fatores que explicam as variações entre os cursos. O primeiro deles é que carreiras já bastante acessíveis – isto é, aquelas em 2012 já apresentavam mais da metade de seus ingressantes oriundos do ensino médio público – têm menos margem para mudanças. É por isso que, em alguns cursos, as marcas do antes e do depois praticamente se sobrepõem. Daí se conclui que nos cursos mais elitizados reside a maior margem de transformação. Por isso, foram esses os mais impactados pela implementação integral da Lei de Cotas.
De fato, estimamos que os cursos de graduação menos concorridos (em termos de razão candidato/vaga) foram pouco modificados após a edição da lei. Por exemplo, os cursos 25% menos concorridos observaram um acréscimo de somente 2% na presença de estudantes oriundos da rede pública. Já os cursos 25% mais concorridos observaram um crescimento de 23% na participação de egressos do ensino médio público 1.
O segundo fator que ajuda a entender os nossos resultados diz respeito à uma alteração na estrutura de incentivos dos candidatos. Jovens que antes não viam chances de ingressar em determinadas carreiras – ainda que fossem sua preferência ou vocação – tendiam a escolher, antes da política de cotas, cursos mais facilmente acessíveis. Com as cotas, há um reajuste de expectativas em que o candidato pode ser mais ousado na escolha de carreira. Um exemplo disso ocorre na UnB (Universidade de Brasília): ao passo que houve uma queda de 11% na participação de egressos do ensino médio público no curso de pedagogia, houve um acréscimo de 118% na participação destes no curso de direito. Esse fenômeno se repete em outras universidades e com outras carreiras.
Finalmente, o terceiro fator relaciona-se com a importância que o critério racial tem para a garantia de acesso dos pretos, pardos e indígenas. É cada vez mais evidente que negros e indígenas enfrentam mais obstáculos para ingressar no ensino superior, ainda que alcancem o mesmo desempenho ou tenham o mesmo nível socioeconômico dos jovens brancos. Logo, uma subcota racial dedicada ao combate do racismo é um elemento de grande importância em uma política de ação afirmativa e, por isso, pode ter efeitos maiores quando comparada com outros recortes que não consideram a especificidade da desigualdade racial.
Os resultados aqui apresentados exemplificam transformações no perfil discente dos cursos de graduação no Brasil antes e depois da Lei de Cotas. Por óbvio, esses dados não encerram o debate. Indicam, de todo modo, caminhos para se avaliar e aperfeiçoar uma política de ação afirmativa da extensão como a que implementamos no país.