A participação de OSCs (organizações da sociedade civil) na execução de políticas públicas enfrenta um terreno minado e contraditório no Brasil desde a redemocratização. No âmbito político partidário, podem ser identificadas duas posições que, embora antagônicas ideologicamente, são igualmente favoráveis às parcerias: um lado defende ampliar tal participação de modo a reduzir o papel do Estado como provedor de serviços públicos, e o outro, que tais parcerias promovem uma maior legitimidade às políticas públicas e o fortalecimento das capacidades estatais, a partir da pluralização da participação da sociedade civil organizada na promoção de direitos e no provimento de serviços públicos. Como uma terceira posição, esta contrária às parcerias, há aqueles que, por preconceito institucional, entendem que elas possibilitam oportunidades de desvios e corrupção ou de gasto excessivo de recursos públicos (Carrijo 2019, Bezerra 2020). Apesar da controvérsia que o tema inspira, por meio de um longo processo de diálogo e pactuação entre os múltiplos atores envolvidos, a agenda política intitulada “Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC)” logrou seu objetivo de criar um regime jurídico que reconhece e regulamenta as especificidades dessas organizações nas diferentes modalidades de parcerias estabelecidas com o Estado.
Os primeiros esforços de regulamentar a relação entre Estado e OSCs após a Constituição de 1988 ocorreram durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e encontram-se articulados com as tentativas de reforma do papel do Estado inspiradas no movimento do new public management. A partir do conceito de público não estatal (Bresser-Pereira 1995) foi concebida a primeira lei que regulamenta especificamente a transferência de recursos públicos para prestação de serviços por parte de entidades privadas sem fins lucrativos, que é a Lei das OS (Organizações Sociais) – lei n. 9637/1998. Tal lei foi alvo de ação direta de inconstitucionalidade que tramitou por 16 anos no STF (ADI 1923), com forte questionamento público, especialmente do movimento sanitarista, de que a prestação de serviços públicos por entidades privadas sem fins lucrativos não poderia suplantar ou substituir o papel do Estado, devendo ser exercida de forma apenas complementar (Travagin 2017). A segunda iniciativa foi a Lei das Oscip (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) – lei n. 9790/1999 – concebida no âmbito do Conselho da Comunidade Solidária, órgão vinculado à época à Casa Civil da Presidência da República, que buscou formular regras padrão de governança e acesso a recursos públicos.
Uma democracia fortalecida e diversa pressupõe um ambiente regulatório favorável à existência e à sustentabilidade das organizações da sociedade civil, com o reconhecimento de que elas são relevantes para arejar a ação estatal
Para além das divergências de concepção do Estado, essa legislação de âmbito federal foi insuficiente para estabelecer critérios de seleção de projetos, execução e prestação de contas de recursos públicos por parte das OSCs em todo o território nacional. Ademais, os novos instrumentos criados – contratos de gestão e termos de parceria – não tiveram grande adesão e tampouco afastaram o uso dos convênios que seguiu sendo o instrumento majoritariamente utilizado para as parcerias com as entidades. A modalidade de convênio não foi desenhada para abarcar essa relação entre Estado e Organizações da Sociedade Civil, mas sim para repassar recursos públicos entre órgãos públicos e governos subnacionais.
Após a edição dessas leis, ocorreram duas CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) voltadas para apurar o repasse de verbas da União para organizações, que ficaram conhecidas como “CPI das ONGs”. A primeira foi instalada ainda no governo FHC, com relatório final em 2002, mas cujos efeitos práticos resvalaram no primeiro governo Lula, tendo como um dos seus resultados o PLS 07/2003. Já a segunda é instalada em 2007, com relatório final em 2010. O Senador Aloysio Nunes (PSDB/SP), inspirado no resultado da segunda CPI das ONGs, apresentou o PLS 649/2011. Os dois projetos de lei partem do pressuposto da desconfiança nas organizações e eram considerados criminalizantes pelas organizações da sociedade civil. Estavam tramitando no Congresso Nacional sem uma discussão ativa e organizada por parte do Poder Executivo à época.
Houve ainda uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) que se debruçou especificamente sobre as ações de organizações ligadas ao MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), conhecida como “CMPI da Terra”, instalada em 2003, cujo relatório foi publicado em 2005. Todos esses processos se somaram à atuação do Tribunal de Contas da União que, na ausência de um regramento estabelecido, passou a legislar sobre a matéria por meio de suas recomendações e acórdãos. Ao final, como resultado, houve muitas analogias indevidas da regulação específica dos entes públicos sendo aplicada às organizações da sociedade civil, dificultando a execução de recursos públicos em parceria.
A ausência de uma legislação específica facilitou questionamentos jurídicos e demandas de devolução de recursos mesmo quando o serviço pactuado havia sido integral e satisfatoriamente prestado. A partir deste contexto de forte insegurança jurídica, um conjunto de organizações se articulou na chamada “Plataforma por um Novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil” que apresentou uma carta aos candidatos à presidência da república nas eleições de 2010 pleiteando o aperfeiçoamento da legislação e demais regramentos sobre as OSCs. Ambos os candidatos que disputaram o segundo turno, José Serra e Dilma Rousseff, assinaram a carta, assumindo o compromisso com as organizações.
Com a eleição de Dilma Rousseff, a pauta se tornou uma agenda prioritária para o governo federal coordenada pela Secretaria-Geral da Presidência da República, estruturada em duas frentes de atuação principais: produção de conhecimento e gestão de informações para produção de dados, pesquisas, narrativas e materiais, além de cursos de capacitação para servidores e representantes de OSCs; e produção normativa e regulatória, com o foco de desburocratizar e racionalizar regras, seja alterando normas jurídicas existentes ou formulando novas. Dentre os temas abordados em ambas as frentes estão a contratualização – parcerias, convênios e contratos estabelecidos entre Estado e Sociedade Civil; a certificação – sistemas de outorgas e reconhecimento público pelo Estado; e a sustentabilidade – questões financeiras, tributárias e político-institucionais.
O principal resultado da agenda MROSC, elaborada em um longo e intenso processo de diálogo e pactuação entre os múltiplos atores envolvidos, foi o novo regime jurídico da lei n. 13.019/2014 que trouxe o reconhecimento das especificidades das organizações nas diferentes modalidades de parcerias estabelecidas entre Estado e OSCs. Os convênios foram afastados e foram previstos dois tipos de instrumentos de parceria com repasses de recursos públicos: o termo de fomento, cuja concepção do plano de trabalho é das organizações da sociedade civil; e o termo de colaboração, no qual a administração pública estabelece as diretrizes. Ambos os termos podem conter projetos, que são operações limitadas no tempo, com a entrega de um produto final, ou atividades, que consistem na prestação contínua de um produto ou serviço. Há ainda o acordo de cooperação que se destina às parcerias sem transferências de recursos. A lei organiza o processo de parcerias, desde a fase de planejamento, seleção e celebração, execução, monitoramento e avaliação, e prestação de contas. Também traz o chamamento público como regra geral e a autorização expressa de pagamento de custos indiretos e da equipe de trabalho, com todos os encargos sociais incidentes.
A regulamentação da remuneração das equipes de trabalho e dos dirigentes das OSCs, com ou sem recursos públicos, também foi um tema relevante da agenda MROSC que exigiu a alteração de oito atos normativos. Tais alterações buscaram suprir a ausência de uma regra autorizativa clara no caso do pagamento com recursos públicos, bem como remover as vedações legais tributárias que proibiam o pagamento dos dirigentes das OSCs quando do acesso a benefícios fiscais (IRPJ, CSSL, cota patronal do INSS etc). Ao final, o avanço regulatório permite hoje a remuneração de todos – dirigentes e equipe de trabalho – sem a perda de benefícios fiscais, dentro de limites e condições que foram estabelecidos. A questão ainda desafiadora para as OSCs é de captação, alocação e priorização de recursos e não mais de impedimento legal.
Finalmente, para melhor implementação do novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil foi prevista a criação de uma rede de Conselhos de Fomento e de Colaboração que ainda precisa se efetivar, com estruturas públicas para promover debates, uniformizar entendimentos e formular políticas e boas práticas de gestão.
Tais mudanças representam um avanço importante não apenas em termos técnicos, de aperfeiçoamento legislativo, mas centralmente como avanço democrático. Uma democracia fortalecida e diversa pressupõe um ambiente regulatório favorável à existência e à sustentabilidade das organizações da sociedade civil, com o reconhecimento de que elas são relevantes para arejar a ação estatal, com construção e crítica, e trazem legítimas contribuições para a formulação, execução, monitoramento e avaliação de políticas públicas.