O crescimento da presença indígena no ensino superior

Chantal Medaets, José Maurício Arruti e Flávia Longo
Ampliação do contingente de alunos indígenas na educação básica e adoção de políticas de ação afirmativa ajudam a explicar o número inédito de mais de 70 mil estudantes em 2019

De objetos de interesse científico, os indígenas vêm tornando-se estudantes e pesquisadores, e tanto suas produções acadêmicas quanto seus conhecimentos não acadêmicos são cada vez mais valorizados. Expressões disso são os Encontros Nacionais de Estudantes Indígenas que ocorrem desde 2013 e reuniram mais de 2.000 participantes em sua última edição, realizada em julho deste ano na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Também podemos citar a organização pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), desde 2014, da SBPC Indígena, que em 2017 tornou-se SBPC Afro e Indígena, e a criação, em 2020, da Articulação Brasileira de Indígenas Antropólogos, no interior da ABA (Associação Brasileira de Antropologia). E ainda, desde pelo menos 2016, a atribuição de títulos de doutor honoris causa a lideranças indígenas como Ailton Krenak na UnB (Universidade de Brasília), Almir Suruí na UNIR (Universidade Federal de Rondônia), Raoni Kayapó na Unemat (Universidade do Estado do Mato Grosso), Babau Tupinambá na Uneb (Universidade do Estado da Bahia) e Valdemar Xakriabá na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Trata-se de um fenômeno intelectual e cultural, intimamente relacionado a um evento demográfico: o crescimento do número de estudantes indígenas nas universidades.

Até o final dos anos 1990, os indígenas universitários eram poucos. Segundo o Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2000, eles eram 4.397. Nas últimas duas décadas observamos um crescimento expressivo, chegando, segundo o CenSup (Censo da Educação Superior) a 72 mil matriculados em 2019. O que os dados oficiais nos permitem dizer sobre a presença indígena no ensino superior? Combinamos informações do CenSup e do Censo Escolar, produzidos pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), e dos censos demográficos do IBGE para analisar esse cenário.

A tabela 1 chama atenção para o maior crescimento do número de estudantes PPI (pretos, pardos e indígenas) em relação aos demais grupos de cor/raça entre 2009 e 2019. No interior desse grupo, as matrículas indígenas tiveram o maior crescimento. Este recente e "massivo ingresso" indígena nas universidades é apontado também por estudos recentes sobre o tema.

Tabela mostra número de estudos no ensino superior segundo cor/raça entre 2009 e 2019

É preciso notar que, nos dados do CenSup, a variável cor/raça tem taxas de subnotificação relevantes que foram, graças a medidas do Inep, decrescendo com os anos. A soma das categorias “sem declaração” e “não dispõe de informação”, para a variável cor/raça, representava altíssimos 73,5% em 2009, caindo para 18,2% em 2019. Na curva de crescimento das matrículas indígenas, por exemplo, é provável que pelo menos parte do aumento tenha origem simplesmente na melhor notificação. No entanto, os censos do IBGE, assim como a literatura disponível, nos levam a pensar que o quadro desenhado pelo CenSup não seja muito distante da realidade. Entre 2000 e 2010 o IBGE já indicava um crescimento de indígenas matriculados no ensino superior da ordem de 157% (de 4.397 indivíduos em 2000 a 11.295 em 2010), enquanto o de brancos havia aumentado 101% no período. O crescimento também é coerente com a tendência de aumento da participação de negros no ensino superior desde os anos 2000, decorrente de políticas de ação afirmativa que atingem tanto o setor público como o privado, por meio do Prouni (Programa Universidade para Todos).

No caso dos estudantes indígenas, o que pode explicar essa mudança? Embora não seja possível estabelecer relações diretas de causa e efeito, ao menos dois fatores podem ser mencionados. Primeiro, a ampliação do contingente de alunos indígenas na educação básica. Os censos demográficos de 2000 e 2010 mostram um aumento do número de alunos, e especificamente no caso do ensino médio, um aumento ligeiramente superior àquele do total da população indígena. E o Censo Escolar indica crescimento de 53,7% das matrículas na educação básica como um todo entre 2009 e 2019, e de 71% somente no ensino médio. Há, portanto, um incremento do volume de alunos indígenas, em todos os níveis de ensino.

Gráfico mostra número de estudantes indígenas na educação básica entre 2000 e 2010
Gráfico mostra número de estudantes indígenas na educação básica entre 2009 e 2019

Outra explicação passa pela adoção de políticas de ação afirmativa. No setor público, programas de cotas étnico-raciais e vestibulares diferenciados (para indígenas e quilombolas) e, no setor privado, bolsas de estudo via Prouni, promovem, sem dúvida, maior ingresso de negros e indígenas no ensino superior. Embora ações afirmativas estejam em destaque quando se fala de inclusão social, no caso dos indígenas, é preciso ponderar com cautela seu peso na explicação do aumento total das matrículas. Primeiro, pois a maioria deles está no setor privado (figura 4). Acompanhando a distribuição do conjunto da população universitária no Brasil, aproximadamente dois terços encontram-se em redes particulares – redes que detêm, como se sabe, a maior oferta de vagas no país. Segundo, pois, nesse grupo, a maioria não tem acesso ao Prouni (figura 5).

Gráfico mostra número de estudantes indígenas em instituições de ensino superior entre 2009 e 2019
Gráfico mostra número de estudantes indígenas em instituições de ensino superior privadas entre 2010 e 2019

A importância das iniciativas de reserva de vagas e vestibulares específicos é indiscutível. Elas contribuíram para um aumento de quase sete vezes do número de estudantes indígenas em universidades públicas entre 2009 e 2019. Mas o que o conjunto de dados indica é que, mesmo com essas iniciativas, e provavelmente em função do volume reduzido de vagas aberto por elas, a maior parte dos estudantes indígenas se volta para o setor privado, onde poucos se beneficiam de mecanismos de ação afirmativa.

Para além dos números, nossas pesquisas indicam que as razões que mobilizam pessoas indígenas a buscar o ensino superior são em parte comuns àquelas de tantos outros estudantes (ter um diploma, buscar uma vida melhor), e em parte específicas (aprender a lidar com o mundo “dos brancos”, colocar em evidência os saberes de seus povos, se preparar para melhor lutar por seus direitos). Ambas impulsionam a expansão que os números atestam. As razões específicas, no entanto, têm um efeito político e cultural absolutamente novo sobre a visibilidade pública dos indígenas e sobre a possibilidade de mobilizá-la política e culturalmente. Isso é verdade, em especial, no contexto das instituições públicas, no qual foram registrados todos os acontecimentos evocados no início deste texto.

Chantal Medaets é doutora em antropologia pela Universidade Paris Descartes, professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Unicamp.

José Maurício Arruti é doutor em antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ), professor do Departamento de Antropologia da Unicamp e pesquisador do Afro-Cebrap.

Flávia Longo é doutora em demografia pela Unicamp, pós-doutoranda na Faculdade de Educação da USP.

Este texto faz parte da série de publicações no Nexo Políticas Públicas do “Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022”, coordenado pelo Núcleo Afro do Cebrap e pelo Gemaa do Iesp-Uerj.

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