Um dos argumentos contrários às cotas na graduação conjecturava uma diminuição da qualidade do ensino superior em decorrência da admissão de indivíduos menos preparados academicamente (Campos, 2014). Dados obtidos pelo GEES (Grupo de Estudos sobre Educação Superior) com informações do registro acadêmico da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), frequentada por mais de 34 mil graduandos, permitem examinar essa hipótese. De fato, há diferenças de pontuação no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) quando comparamos as notas de cotistas e não cotistas na UFMG. Entretanto, resta questionar o quanto essas diferenças são significativas e, sobretudo, se elas se traduzem em desempenhos desiguais no decorrer da trajetória dos alunos na universidade.
Desde o processo seletivo para ingresso no início de 2014, quando a UFMG aderiu ao Sisu (Sistema de Seleção Unificada), mais de 80% dos admitidos para cursos presenciais têm sido selecionados com base exclusivamente em sua pontuação no Enem (média simples das cinco provas deste exame). Como mostra o primeiro gráfico, a pontuação no Enem de ingressantes pelas cotas tende a ser mais baixa que a dos ingressantes pela ampla concorrência. Essencialmente, quanto mais alta a densidade exibida neste gráfico (altura de uma distribuição), mais ingressantes pontuaram numa dada região de valores. Chega-se à conclusão, então, que uma maior proporção de ingressantes pela ampla concorrência obteve pontuações mais altas (em relação às distribuições de cotistas, identificadas pelas siglas M1 a M4).

Analisamos o intervalo de 2016 a 2020, correspondente aos cinco primeiros anos desde a implementação completa das cotas na UFMG. Nesse período, o Enem médio entre ingressantes pela ampla concorrência foi de 723; essa pontuação foi 62 pontos menor na modalidade M1 (escola pública, baixa renda e preto, pardo ou indígena – PPI) e 19 pontos menor na modalidade M4 (escola pública, independentemente da condição de renda ou raça), em média. Na M1 encontram-se as maiores diferenças em relação à ampla concorrência, e na M4, as menores – padrão verificado também em análises adicionais que comparam ingressantes de um mesmo curso.
Note-se que as modalidades de cota recepcionam públicos efetivamente distintos. Por exemplo, a pontuação no Enem de ingressantes por M4 é próxima à da ampla concorrência. Já os ingressantes pelas cotas PPI – i.e., M1 e M3 (escola pública e preto, pardo ou indígena) – parecem ter enfrentado maiores obstáculos em sua trajetória escolar que os demais cotistas; de fato, há vasta evidência sobre desigualdades raciais na educação básica pública (e.g., Paixão, Rossetto e Carvano, 2011; Alves e Ferrão, 2019). Essas disparidades iniciais entre cotistas PPI e não PPI têm uma implicação contundente: as subcotas por cor/raça alcançam um grupo que dificilmente acessaria a UFMG na ausência de ação afirmativa de cunho racial.
As desigualdades sociais e educacionais que motivam as cotas não se resolvem unicamente com um desempenho exemplar na graduação. De todo modo, o caso da UFMG, instituição reconhecida por sua excelência, provê evidência de que cotistas têm rendimento próximo ao de não cotistas
No entanto, as desigualdades iniciais no Enem não se reproduzem integralmente em diferenças de rendimento na graduação. Para representar rendimento, utilizamos a NSG (nota semestral global). Ela equivale à média das notas obtidas em atividades acadêmicas curriculares (tipicamente, disciplinas) ponderadas pelo número de créditos de cada atividade. Para cada semestre letivo, é calculada uma NSG por estudante, na escala 0 a 100. Assim como a pontuação no Enem, a NSG tende a ser mais baixa nas modalidades de reserva; todavia, as diferenças de NSG são bem mais sutis (vide segundo gráfico). A NSG média dos ingressantes pela M1 é 75, apenas quatro pontos menor que a NSG média dos admitidos pela ampla concorrência (79); na M4, essa diferença de médias é desprezível (-0,26).


Análises econométricas complementares confirmam que o rendimento acadêmico de cotistas e não cotistas é próximo na maior parte dos cursos. Nas ciências exatas e tecnológicas, contudo, as notas se distanciam mais: a NSG média em M1 (65) é nove pontos menor que na ampla concorrência (74). Além disso, analisando a permanência, somente nessa área encontramos uma maior probabilidade de evasão da universidade para cotistas em relação a não cotistas – o que levanta a questão de como apoiar ingressantes cuja formação seja mais frágil em certos conteúdos do ensino médio (e.g., os necessários para um bom desempenho em Cálculo).
Além da inspeção visual dos gráficos, que neste caso é bastante informativa, uma forma de apreender a diferença entre as distribuições de Enem e NSG é calcular o que se chama de EMD (earth mover’s distance, na sigla em inglês), uma medida de dissimilaridade entre duas distribuições (Lupu, Selios e Warner, 2017). Imaginemos que cada distribuição de interesse (digamos, distribuições A e B) seja um monte de terra; a EMD calcula o esforço mínimo necessário para transformar o monte A no monte B. O esforço corresponde à quantidade de terra do monte A a ser movida vezes a distância pela qual essa terra será movida.
Aqui, interessa o exercício de calcular a EMD entre a distribuição do Enem de ingressantes por uma modalidade de reserva e a distribuição dos ingressantes pela ampla concorrência. Dessa forma, determinamos as distâncias de preparo acadêmico inicial. Repete-se então o procedimento, mas desta vez considerando a NSG, para computar as distâncias de rendimento durante a graduação. Os resultados curso a curso revelam que as disparidades (i.e., EMDs) de NSG são em média 41% menores que as disparidades de pontuação no Enem. Nas ciências da vida, as EMDs de NSG são 42% menores que as de Enem, em média; nas ciências exatas e tecnológicas, 30% menores; e nas humanidades, 48% menores. Vale salientar que a redução de disparidades é generalizada: em 69% dos 86 cursos analisados, as EMDs de NSG são inferiores às do Enem em todas as modalidades de cota.
Admitidamente, as desigualdades sociais e educacionais que motivam as cotas não se resolvem unicamente com um desempenho exemplar na graduação. De todo modo, o caso da UFMG, instituição reconhecida por sua excelência, provê evidência de que cotistas têm rendimento próximo ao de não cotistas. Ao longo da graduação, cotistas estão superando parte da desvantagem em preparo acadêmico com a qual chegaram à universidade. Compreender como isso acontece é certamente uma tarefa importante na agenda de pesquisa sobre impactos das cotas.