Em cada ciclo eleitoral, candidatos propõem suas balas de prata preferidas para dar fim à criminalidade nas cidades brasileiras. É preciso que suas propostas tenham mais humildade. A pandemia da covid-19 traz importantes lições que reforçam a complexidade do desafio que é a segurança pública no Brasil e os pretendentes a cargos públicos devem reconhecê-la.
A primeira lição é que políticas públicas desenhadas para resolver outros problemas públicos – a disseminação da covid-19 na população, por exemplo – têm impacto sobre a ocorrência de crimes, ainda que essa não seja a intenção original. Nossa análise confirma que, com o comércio fechado e a circulação reduzida de pessoas nas ruas, o número de crimes contra o patrimônio caiu sensivelmente no Rio de Janeiro durante a quarentena de março de 2020. Restrições de circulação tão restritivas provavelmente não serão reeditadas, mas a experiência mostra que as propostas de um candidato para transporte público, saúde e educação podem ter impacto sobre crimes e nunca devem trabalhar contra tornar a sociedade mais segura.
Além disso, nem todo tipo de crime foi afetado da mesma forma quando todo mundo ficou em casa. A segunda lição é que intervenções que indiretamente reduzem roubos e furtos não reduzem ou podem até aumentar a ocorrência de homicídios e outros crimes contra a vida. Essa segunda lição é remédio certeiro contra as balas de prata.
Nós analisamos a relação entre as taxas de vários crimes e mudanças na mobilidade urbana no estado do Rio de Janeiro no início da quarentena em estudo recém publicado na EconomiA, para dar luz a essa complexidade. Encontramos o seguinte.
Muito se especulou sobre uma possível diminuição da quantidade de crimes durante as semanas de maior isolamento social. De fato, em outros países, menos crimes foram cometidos. Mas nossa análise mostra que, no Rio de Janeiro, essa redução não atingiu todos os tipos de crime por igual.
Esperamos ver um ciclo eleitoral com conversas e propostas sobre segurança pública com mais nuance, reconhecendo que taxas de criminalidade respondem a vários imputes, inclusive às políticas fora do escopo das pastas de segurança e ordem pública
Os crimes contra o patrimônio tiveram quedas expressivas assim que o fechamento do comércio e as restrições ligadas à covid-19 foram anunciadas no Estado do Rio de Janeiro. Roubos e furtos são crimes de oportunidade e acontecem mais em locais de alta circulação, e seu principal “ingrediente” é o encontro entre o perpetrador e sua vítima. Por isso, são mais prováveis em pontos específicos da cidade e são mais sensíveis a intervenções ambientais no espaço urbano, como por exemplo, maior iluminação pública. Esses crimes caíram sensivelmente quando todos ficamos em casa.
Mortes decorrentes de intervenção policial também tiveram uma queda, porém pequena. Nossa pesquisa demonstra que a queda foi limitada aos bairros mais móveis na cidade, mas isso vem com uma ressalva: os lugares onde mortes decorrentes de intervenção policial normalmente ocorrem já são limitados a essas áreas. Não podemos afirmar se a queda se deve à mudança de mobilidade nessas regiões ou ao comportamento dos policiais, com a alteração de rotinas de operações, rondas e patrulhas.
Homicídios e tiroteios, por outro lado, têm causas diferentes e, por isso, foram menos impactados pela queda na mobilidade urbana durante a quarentena de março de 2020. São crimes que resultam de fatores e motivações que não necessariamente foram impactados pelo isolamento social, como as relações entre grupos criminosos organizados que exercem controle territorial em partes da cidade, entre esses grupos e a polícia, e a dinâmica do mercado ilegal de drogas ilícitas. A estabilidade no número de tiroteios no período é um forte indício de que essas dinâmicas não foram alteradas no período. Nossa análise revela que, mesmo com a queda de mobilidade, os tiroteios continuavam na mesma taxa. Podemos supor, portanto, que os homicídios e tiroteios são mais resilientes a mudanças nas políticas públicas direcionadas à mobilidade urbana.
Nossa análise sugere que a taxa de extorsão responde a mudanças de mobilidade, mas claramente tem outras causas. A mudança na quantidade de extorsões se manteve independente do nível anterior de mobilidade do local analisado: ela caiu tanto nos bairros mais quanto nos menos movimentados. A queda indica que a prática de extorsão foi impactada negativamente pela pandemia – talvez foi mais difícil extorquir pessoas com menos gente na rua, ou às lojas, porque foram fechadas. Mas a queda concomitante nos diferentes tipos de bairros reforça que esse tipo de crime não é só um crime de oportunidade que se apresenta em lugares de alta circulação, mas que pode ser correlacionada com a presença de grupos criminosos e sua dominância no território, que acontece independente do seu nível de mobilidade.
Nossa pesquisa reforça a necessidade de compreender as diferentes dinâmicas criminais, se quisermos tornar o Rio de Janeiro e outros estados brasileiros mais seguros. Ela também abre espaço para intervenções que previnam a violência para além da polícia, trazendo outros entes federativos para o esforço de redução de crimes: a alta relação entre crimes contra patrimônio e mobilidade e entre controle territorial de grupos criminosos e crimes contra a vida traz o debate sobre redução de violência para dentro das prefeituras e suas secretarias de segurança pública. Mas não na direção de torná-las semelhantes às polícias militares e sua presença ostensiva na rua, pelo contrário.
O que aconteceu durante a pandemia, com grande parte da população ficando em casa, não irá se repetir, mas as lições desse grande experimento social não devem ser ignoradas. Uma última merece destaque e pode revelar quais candidatos têm propostas sérias para a segurança pública: para reduzir crimes, existe um papel importante de ordenação do espaço urbano, sua infraestrutura de transporte e circulação e regulação da ocupação territorial. Leis federais e principalmente o executivo estadual precisam trabalhar em conjunto com as cidades para implementar políticas públicas coerentes. Esperamos ver um ciclo eleitoral com conversas e propostas sobre segurança pública com mais nuance, reconhecendo que taxas de criminalidade respondem a vários imputes, inclusive às políticas fora do escopo das pastas de segurança e ordem pública.