Cotas para quilombolas?

José Maurício Arruti
Singularidade cultural e experiência histórica temporalmente profunda e territorialmente situada, que se expressa na diversidade de conhecimentos e práticas tradicionais, estão entre os argumentos que justificam a ideia de cotas para quilombolas

A discussão sobre cotas sociais, étnico-raciais e de gênero transformou-se em uma espécie de câmara de condensação das discussões muito mais gerais, dispersas e históricas sobre desigualdade que compõem a sociedade brasileira.

Talvez, o fato dessa discussão ter como ambiente a academia seja o que permite que ele opere como um laboratório no qual nos colocamos, enquanto sociedade, sob teste. Partindo de uma pergunta básica, vamos abrindo as várias camadas nas quais percebemos que ela deve ser decomposta.

Da pergunta mais geral sobre como corrigir os efeitos da desigualdade no acesso ao direito à educação, somos levados a uma pergunta mais complexa e derivada, sobre a própria composição da desigualdade: Quais os dispositivos e formas assumidas pela desigualdade de acesso aos direitos no Brasil?

Essa pergunta ganha nova complexidade quando temos clareza de que na discussão sobre desigualdades, devemos destilar não apenas as camadas ou hierarquias produzidas pelo sistema de classes, como também as camadas e hierarquias produzidas pela história sociocultural brasileira.

Então, as perguntas não param de se multiplicar por derivação: a desigualdade de classe tem precedência ou contém, em última instância, a desigualdade sociocultural? Como e quais desigualdades socioculturais reconhecer? Como as desigualdades de acesso atuam sobre as diferentes frações da sociedade brasileira? Quais dessas frações devem ser contempladas por processos de reparação? Elas devem ser tomadas juntas ou em separado?

Se essas perguntas já são complexas em si mesmas, elas podem gerar a sensação de vertigem, quando temos que respondê-las no tempo da ação social, no tempo da política.

Vou me concentrar em uma pergunta, derivada das anteriores, que me foi proposta por uma consulta da Associação de Pós-graduandos da UFRJ: devemos estabelecer cotas para quilombolas, além daquelas já previstas para negros e negras?

Penso que aqueles que respondem a esta pergunta com um “não”, baseiam-se em um argumento puramente nominalista: quilombolas são negros, logo, já estão contemplados pelas cotas para negros.

O que gostaria de argumentar muito brevemente é que essa resposta não percebe as profundas diferenças existentes entre essas categorias sociais em pelo menos três dimensões:

  • As manifestações do racismo, e da própria condição de ser negro e negra, para além de suas semelhanças mais gerais, ganham formas e efeitos muito diferentes no ambiente urbano e no ambiente rural;
  • A produção das categorias “negro” e “quilombola” também decorrem de processos históricos diferentes e separados no tempo, associados a relevantes diferenças sócio-antropológicas, das quais derivam grandes diferenças jurídicas;
  • A própria inserção dessas categorias no debate sobre cotas não decorre uma da outra, estando separadas não só no tempo, como na sua lógica ou justificativa.

Não pretendo me demorar em cada um desses argumentos, mas apenas esboçá-los brevemente.

O racismo que atinge as comunidades quilombolas não se manifesta da forma geral e classificatória que ele assume no meio urbano, marcado pelo individualismo, pela dispersão social e pelo anonimato das massas. Nos contextos quilombolas observamos o racismo assumindo a forma de relações de dominação diretas, historicamente mantidas por meio de interações pessoais, algumas vezes reproduzidas por gerações paralelas de negros e brancos em posições de dominação estáveis. Além disso, tais relações não ocorrem nos meios abstratos do mercado de trabalho ou do mundo da cultura, mas em territórios precisos, com fronteiras sociais e espaciais mais ou menos conhecidas e até mesmo reconhecidas, nos quais a gestão ambiental e as práticas culturais estabelecem um enraizamento. Isso produz relações profundamente coletivizadas, em relação às quais as estratégias são também predominantemente coletivas, mais do que individuais ou mesmo familiares.

Neste caso, o debate não rompe com os argumentos baseados na reparação histórica, mas o deslocam significativamente na direção dos argumentos pela diversidade cultural

Por isso a categoria “quilombola” tem uma história social e jurídica convergente, mas distinta da categoria negro. É verdade que as apropriações teóricas e culturais, protagonizadas por Abdias do Nascimento e Beatriz do Nascimento, fizeram do quilombo uma espécie de ideário político para o povo negro. Mas o quilombola que emerge da Constituição Federal de 1988, apesar de viabilizado por este ideário, desenha um sujeito de direito novo, cuja justificativa está na sua singularidade cultural e territorial. Isso fez com que, a partir de 2003, mais de seis mil comunidades passassem a ser vistas como público diferenciado das políticas governamentais, no campo da regularização fundiária, mas também, com força e importância progressivas, no campo da educação.

Isso explica o fato da inserção da categoria quilombola no debate sobre cotas não decorrer diretamente dos argumentos em favor de pretos e pardos, mas como uma expansão dos argumentos em favor das cotas para indígenas. Neste caso, o debate não rompe com os argumentos baseados na reparação histórica, mas o deslocam significativamente na direção dos argumentos pela diversidade cultural. Como no caso das cotas para indígenas, passam ao primeiro plano os argumentos sobre o benefício da diversidade no ambiente universitário, assim como sobre os benefícios da ampliação das fontes de saberes na construção do conhecimento científico, rompendo com, ou ao menos tornando-o menos, eurocentrado.

Além disso, os indígenas ingressam no debate reivindicando as cotas como extensão do seu direito à educação diferenciada, estabelecido pelo reconhecimento oficial das escolas indígenas, marcadas pela singularidade cultural, pelos projetos coletivos e pelo compromisso com um território.

De fato, o reconhecimento oficial das comunidades quilombolas teve como precedente fundamental o reconhecimento dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988. Foram seus artigos 231 e 232 que abriram a concepção de nação brasileira para a ideia de pluralidade cultural e identitária, a partir da qual outras manifestações de pluralidade passaram a ser juridicamente concebíveis, permitindo a multiplicação de categorias territorialmente situadas de identidade, memória e saberes. É nesse sentido que apontam os argumentos que justificam a ideia de cotas para quilombolas:

  • Singularidade cultural, associada a uma experiência histórica temporalmente profunda e territorialmente situada, que se expressa na diversidade de conhecimentos e práticas tradicionais;
  • Diversidade educacional, reconhecida oficialmente e viabilizada não apenas por meio da lei 10.639/2003, mas em especial pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (2012) e pelas experiências concretas de educação diferenciada das escolas quilombolas;
  • Legitimidade da demanda enquanto população tradicional, amparada pela ratificação do Estado brasileiro à Convenção 169 da OIT;

Esses são, de modo geral, os argumentos que orientaram os precedentes acumulados por universidades públicas que já preveem os quilombolas como público específico de cotas nos seus editais de ingresso na graduação. Segundo o que apuramos na pesquisa que temos desenvolvido na Unicamp sobre o ingresso e permanência de indígena nas universidades, entre as 117 universidades públicas estaduais e federais que preveem ingresso diferenciado por critério étnico ou racial, 14 citam especificamente os quilombolas como público beneficiado. São instituições de todas as regiões, apesar da sua concentração no Nordeste, onde também há a maior concentração de localidades quilombolas, segundo levantamento recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Além disso, é bom lembrar, depois de quase 25 anos de reconhecimento constitucional e 20 anos de políticas públicas diferenciadas, as comunidades e o movimento quilombola não são mais uma metáfora histórica, mas constituem sujeitos políticos ativos, um campo social complexo e diversificado, com repertórios e pautas próprias.

José Maurício Arruti é professor do Departamento de Antropologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisador do Afro-Cebrap.

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