Diversas análises indicam a permanência e o entranhamento da religião como agente fundamental na sociedade brasileira. É notável também que o estatuto de “religião”, como instituição religiosa hegemônica, conte com uma associação com o legado do catolicismo, este em sua complexidade histórica e versões mais ou menos institucionalizadas. A produção das ciências sociais tem mostrado, por exemplo, o quanto os processos seculares de criminalização e discriminação das religiões afro-brasileiras estão vinculados ao racismo e ao poder colonial, indicando não somente sua estigmatização, como as disputas de sentido do que é ou não religião, tendo como referência a Igreja Católica. Não devemos perder de vista as respostas dos movimentos negros e de terreiros, organizados com vistas a combater o racismo religioso.
Por outro lado, o protestantismo conta com uma história no país, com interdições e limitações também impostas pelo predomínio católico. Estudos neste campo ganharam relevo nas três últimas décadas do século 20. Os protestantismos/evangélicos, em sua diversidade inerente ao segmento, assim como as religiões afro-brasileiras, passam a receber atenção da literatura socioantropológica quando ocorre a entrada em cena das igrejas (neo)pentecostais, que conferem novos contornos ao panorama religioso.
A década de 1980 é identificada como período de efervescência: democratização, Constituinte, Constituição Federal/1988, movimentos sociais ativos. Notava-se a emergência e impactos de um posicionamento diferente no espaço público, implementado e difundido pelas recém-criadas igrejas neopentecostais, em especial, a Igreja Universal do Reino de Deus. Essa “terceira onda” do pentecostalismo brasileiro, como ficou conhecida, de acordo com estudos de Paul Freston, produziu uma repercussão marcante, pois desequilibrou o cenário e visibilizou a não adesão ao contrato republicano de privatização do religioso, sob a égide da separação Estado/religião, que incluía a hegemonia católica, difundida e diluída em vários setores sociais.
Além desta perspectiva histórica, é preciso afirmar ainda a existência de importantes especificidades e nuances regionais. Vale considerar a ótica que orienta a discussão do “campo religioso brasileiro”, aspectos e atores em questão, perspectivas qualitativas, quantitativas, micro ou macro. Qualquer tentativa de homogeneização incorre em reduções infrutíferas. Ao contrário, importa considerar sua plasticidade e polifonia.
A religião para além dos templos, em especial em sua conexão explícita com a esfera política, se destaca e emerge como uma das temáticas norteadoras das análises
A religião para além dos templos, em especial em sua conexão explícita com a esfera política, se destaca e emerge como uma das temáticas norteadoras das análises. Não à toa, pesquisas aprofundadas foram desenvolvidas nos anos 1990, como a seminal e obrigatória “Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja”. Os atravessamentos da religião nas diversas dimensões da vida social também propiciaram recortes analíticos que consideram graus de adesão, pertencimento, trânsitos, escolhas.
Os dados produzidos pelo IBGE (Censos 1990, 2000 e 2010) assumem centralidade em diversos estudos. Algumas mudanças marcantes foram constatadas, como: a forte retração da hegemonia católica; o aumento significativo do segmento evangélico (neo)pentecostal e dos sem-religião; a diversificação religiosa.
Na falta dos dados do Censo/2020, no momento da redação deste verbete, contamos com o levantamento do Instituto DataFolha para atualizar o panorama. Com base nele, no Brasil, 50% são católicos, 31% evangélicos, e 10% não têm religião.
Nesse percurso que reafirma a presença da religião no privado e no público, alteram-se as porcentagens e posições no ranking das maiores instituições religiosas, ocorrem transformações no modo de vida, nas trocas, nas formas de posicionamento político e social “no mundo”, e no cotidiano. No entanto, quantidade não significa necessariamente mais poder. O ponto central é observar os agentes que acionam com maior competência mecanismos, estratégias e negociações para obter acesso a espaços de poder. Da mesma forma, visibilidade pública e influência política não correspondem diretamente à maior quantidade de membros.
O cenário dinâmico das mudanças contundentes mostra que analisar o campo religioso brasileiro é tarefa instigante e árdua. As abordagens acadêmicas sobre o fenômeno lançam luz sobre os diferentes aspectos e impactos, desde os atinentes à dimensão política àqueles mais cotidianos, reafirmando-se o dever de se considerar as diferenças regionais.
Surgem personagens, como os “evangélicos não-determinados”/“não-praticantes”, em um campo costumeiramente qualificado pela forte adesão e frequência institucional. Há, também, os “católicos praticantes”, em suas variadas tipologias, defensores da exclusividade, além do campo das religiões afro-brasileiras, com suas lutas, tensões e peculiaridades.
Nesse sentido, o “campo religioso brasileiro” nos informa que “ser brasileiro” não significa automaticamente ser católico, mas que a maioria é “cristã”. Significa a existência de trânsitos e passagens, ecumenismos e sincretismos/hibridismos, mas também exclusivismos, conflitos, intolerâncias e racismo religioso. Há desinstitucionalização e institucionalização e, concomitantemente, os sem-religião. Assim, a nomeação “campo religioso brasileiro” é mais do que um tema complexo, é um campo minado, no qual o próprio conceito está em risco permanente.