Avaliar o sucesso da Lei de Cotas (12.711/2012) passa necessariamente por investigar as transformações no perfil dos ingressantes das universidades federais brasileiras. Contudo, essa tarefa encontra alguns obstáculos relacionados à falta de integração das bases de dados educacionais brasileiras.
Para suprir essa lacuna, realizamos um cruzamento entre duas bases de dados administradas pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira): o Censo da Educação Superior e o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Com isso, pudemos compor um retrato do perfil discente das instituições federais antes e depois da Lei de Cotas, levando-se em conta os critérios de delimitação de beneficiários para cada uma das instituições. Em trabalho anterior, publicamos esses dados em mais detalhes. Aqui, vamos atentar ao quantitativo de estudantes oriundos do ensino médio público e aos PPI (pretos, pardos e indígenas).
Os números apresentados ao longo deste texto não deixam dúvida de que o perfil discente dos campi federais foi efetivamente modificado no período de 2012 a 2016
No painel do gráfico 1, observa-se a distribuição dos cursos de graduação em função da participação de estudantes que frequentaram o ensino médio na rede pública (a) e de estudantes PPI oriundos da mesma rede (b), entre 2012 e 2016. Quanto mais à direita no eixo horizontal, maior a presença de estudantes do respectivo perfil; quanto maior o valor do eixo vertical, mais alto o percentual de cursos que atendem determinada condição. Os dois gráficos acusam um deslocamento progressivo da distribuição para os valores mais elevados, evidenciando um aumento da participação dos dois grupos beneficiários da política de cotas ao longo de toda a distribuição de cursos.
Em 2012, antes de a lei entrar em vigor, 55% dos ingressantes das instituições federais haviam se diplomado no ensino médio público; quatro anos depois, esse percentual salta para 64% 1. Ademais, o grupo mais beneficiado pela política foram os PPI (pretos, pardos e indígenas) da rede pública, os quais passaram de 28% para 38% dos ingressantes no mesmo período, correspondente ao maior crescimento relativo entre todo o público-alvo da Lei.
O que é interessante notar, em ambos os gráficos, é que as mudanças foram mais pronunciadas quanto menor o patamar de inclusão prévio de um dado curso. De um lado, cursos já bastante inclusivos – por exemplo, com mais de 70% de seus ingressantes vindo da rede pública – não parecem ter sofrido tanto impacto, visto que as curvas de 2012 a 2016 praticamente se sobrepõem. Por outro lado, o perfil de cursos até então pouco inclusivos foi bastante alterado após a implementação integral da legislação. Não é exagero afirmar que o perfil de quem frequentava tais cursos foi profundamente transformado em um intervalo de poucos anos.
Isso pode ser percebido quando atentamos para cada uma das instituições. O gráfico 2 ilustra a proporção de pretos, pardos e indígenas provenientes do ensino médio público entre ingressantes das universidades federais em 2012 e em 2016.
No topo do gráfico, encontram-se universidades do Norte e do Nordeste, regiões que concentram as populações negra e indígena no país. Nas duas primeiras posições, as universidades federais da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e do Oeste do Pará (Ufopa) têm entre pelo menos 70% de seu corpo discente estudantes PPI que concluíram o ensino médio em escolas públicas. Além destas, também se nota que, mesmo em universidades já bastante inclusivas no ano de 2012, variações positivas são observadas no período estudado.
Na base do gráfico, vê-se que universidades localizadas em regiões do país com menos participação de PPI na população como um todo – tais como nos estados da região Sul e em São Paulo – também observaram menores presenças desse segmento populacional em suas respectivas instituições de ensino. Contudo, isso está longe de significar que não houve avanço no perfil discente. De fato, algumas das maiores variações relativas aconteceram em universidades sulistas, tais como as federais de Santa Catarina (UFSC), de Pelotas (UFPel) e da Fronteira Sul (UFFS), em que a presença de PPI da rede pública mais do que dobrou entre 2012 e 2016.
Em determinadas instituições, a Lei de Cotas parece ter sido pouco efetiva ou, em alguns casos, estar associada à queda na participação desse segmento populacional. O caso mais notável é a Unifap (Universidade Federal do Amapá), que testemunhou uma redução de 58% para 48% entre 2012 e 2016. Em outras instituições, a exemplo da federal rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), do Pará (UFPA), da Integração Latino-americana (Unila) e do ABC (UFABC), o que se observou foi, na melhor das hipóteses, uma estagnação no perfil discente.
Atribuímos essa tendência a duas razões principais. Em primeiro lugar, as cotas não foram inauguradas com a legislação federal; de fato, a maioria das universidades já havia adotado algum programa de ação afirmativa antes da promulgação da Lei, de modo que a política federal de cotas possa não ter tido tanto impacto sobre uma instituição que já havia se tornado bastante inclusiva. A segunda razão está relacionada ao modo de implementação da Lei de Cotas dentro do Sisu (Sistema de Seleção Unificada), que, ao criar listas de inscrição separadas por categoria da Lei, acaba gerando ineficiências e, muitas vezes, prejudicando alunos potenciais beneficiários, como mostra o estudo dos economistas Aygün e Bó (2021).
Uma ressalva importante é que esses dados se referem ao perfil discente das universidades federais antes e depois da implementação da Lei de Cotas, porém, não permitem isolar, por si só, o efeito das cotas sobre as mudanças observadas. Um estudo de Ursula Mello ainda a ser publicado mostra que a porcentagem de vagas das instituições públicas de ensino superior destinadas para estudantes oriundos do ensino médio público variou de 24,5% em 2012 para 43,5% em 2015. Ao isolar com um modelo econométrico o impacto causal dessa expansão de outros fatores, a autora estima que 57% desse aumento de matrículas de estudantes de escola pública deve-se, especificamente, à expansão da política de cotas.
Os números apresentados ao longo deste texto não deixam dúvida de que o perfil discente dos campi federais foi efetivamente modificado no período de 2012 a 2016. Se, de um lado, ainda existem muitos desafios pela frente – tais como garantir que estudantes menos privilegiados consigam progredir e concluir a graduação com sucesso –, resta evidente que, sem uma política de ação afirmativa, tampouco conseguiremos avançar na democratização do acesso.