A crise planetária invade a nossa vida urbana

Leandro Luiz Giatti
A escassez de água compromete a geração de energia e a produção de alimentos e pode inviabilizar megacidades, como na Região Metropolitana de São Paulo

Existe uma falsa percepção de que o cotidiano urbano se dissocia das questões inerentes à escassez de recursos ecológicos que dão suporte à vida das cidades. Com efeito, o processo de modernização, que sempre se pautou na busca de estabilidade e certeza, também teve como um de seus resultados a urbanização de grandes contingentes populacionais, que prossegue de maneira acelerada e sem precedentes na história da humanidade. Claro, há vários benefícios e transformações na forma como a humanidade se concentra em grandes cidades, sobretudo no acesso a determinados recursos e serviços essenciais, como energia, saneamento básico, mercado de trabalho, educação e saúde. Contudo, o modo de vida urbano aliena quanto a compreensão da origem dos recursos e da crise ambiental de dimensões planetárias.

Desde o final do século passado, um eminente pensador francês, chamado Edgar Morin, vem chamando a atenção para a necessidade de a humanidade transcender o pensamento reducionista e se religar à complexidade das questões sócio ecológicas que remetem à perspectiva de sustentabilidade e de sobrevivência humana no planeta. Mas para evitar a predominância de jargões acadêmicos, vamos tentar contextualizar alguns aspectos dessa ideia de complexidade e de crise ecológica.

Pensemos em algumas crises recentes que vivenciamos. Entre 2014 e 2016, tivemos a mais severa crise hídrica que ameaçou milhões de pessoas ficarem sem água em megacidades como na Região Metropolitana de São Paulo. Em 2020-21, sérias ameaças também de origem na escassez hídrica acarretaram cenário crítico com ameaça de desabastecimento e marcante elevação nas tarifas elétricas. Neste ano de 2022, após a conjuntura da pandemia por covid-19, crise econômica, desemprego e desvalorização de nossa moeda, chegamos ao número de 33 milhões de brasileiros em situação de fome.

Água, energia e alimentos caracterizam formas de escassez interdependentes. São cadeias em que a gestão de cada uma implica em compensações e pressões nas demais, evidenciando assim um tecido conjunto, complexo

Cada uma destas situações pode ter diferentes causas e, de modo geral, afetam e permeiam a vida urbana. Mas mais do que isso, a complexidade dessas crises pode ser analisada por suas interdependências. Vejamos, a produção de alimentos carece fundamentalmente de água e de energia, portanto a crise climática global que traz incertezas e maior risco de eventos extremos, como grandes secas, impõe ritmo de restrições que podem acentuar a escassez de alimentos e exacerbar o quadro de insegurança alimentar. Além disso, a oferta de água e seu tratamento e distribuição também são ações fortemente dependentes de energia, enquanto que a produção de energia carece de água, seja por nossa matriz hidrelétrica, seja na indústria do petróleo e dos biocombustíveis. O que temos nesse sentido, é o que chamamos de um nexo entre água, energia e alimentos.

Dito de outra maneira, água, energia e alimentos caracterizam formas de escassez interdependentes. São cadeias em que a gestão de cada uma implica em compensações e pressões nas demais, evidenciando assim um tecido conjunto, complexo. Essa perspectiva analítica nos esclarece quanto ao fato de que uma crise hídrica como a de 2014-2016 não se limitou apenas à ameaça de falta d'água para a população, mas também em outros setores de forma sistêmica. Em termos práticos, têm-se a reboque reflexos diretos na escassez e nos preços de alimentos e da energia e, subsequentemente, de bens industrializados e de serviços.

O entendimento dessas relações de interdependência remete a transcendência de escalas, pois, por exemplo, a escassez hídrica é um problema global que afeta todas as cadeias produtivas. Sendo que a vida urbana caracteriza o destino de boa parte das riquezas e produções das atividades humanas, sua conexão de dependência por recursos remete inevitavelmente à condição global de crise ecológica e de extrapolação de limites e recursos planetários.

No estado São Paulo, o mais populoso do Brasil, temos inclusive tratado essas questões no âmbito da Macrometrópole Paulista, um conjunto urbano que envolve 174 municípios, tendo a capital paulista como seu centro polarizador, que se estrutura a partir de um conjunto de cinco regiões metropolitanas, dois aglomerados urbanos e uma microrregião. Trata-se de um território distinguível por uma forma interdependente de escassez hídrica que se associa aos desafios de seu desenvolvimento urbano e de cadeias produtivas. Cabe exercitar a interpretação da transcendência e do nexo entre os recursos necessários para o suporte à vida e à economia deste imenso conjunto urbano com mais de 34 milhões de habitantes. O distante bioma Amazônia, por exemplo, que possui relevância global em termos de regulação climática, também pode ser compreendido como fundamental para a Macrometrópole Paulista e outras regiões ao sul da grande floresta, pois é de lá que grandes volumes de umidade se deslocam garantindo chuvas que proveem recursos hídricos fundamentais. Os impactos sobre a Amazônia e a outros biomas brasileiros têm efetivamente se associado ao fato de que o Brasil perdeu 15% de sua superfície hídrica desde a década de 1990.

Sintetizando apenas uma linha de raciocínio nessa lógica de múltiplas escalas e setores conectando os problemas globais à nossa vida urbana, temos que a degradação da Amazônia interfere no clima global e na disponibilidade hídrica em boa parte do Brasil, como na região mais populosa e economicamente ativa do país, que é a Macrometrópole Paulista. E as consequências disso se sobrepõem pelas interdependências entre água, energia e alimentos. Desde a nossa vida moderna urbana, não temos mais como ignorar a condição ecológica global e a ameaça de atividades predatórias, irresponsáveis e reducionistas. Ou seja, não podemos pensar pura e simplesmente que teremos êxito, riqueza e garantias de suporte ao grande contingente de brasileiros urbanos se optarmos apenas por alternativas de expansão da fronteira agrícola sobre os ecossistemas.

O discurso de que o Brasil preserva muito de seus ecossistemas como uma forma de abonar o desmatamento e a degradação de nossos biomas é nitidamente colocado em xeque na atualidade diante da complexidade das crises que enfrentamos. As conexões aqui tratadas, portanto, evidenciam que os problemas globais e regionais extra urbanos invadem e ameaçam a aparente segurança de nossa vida moderna nas cidades.

Mas o conhecimento não é em si um mero portador de alarmismo. A compreensão dessas interdependências aponta para uma grande diversidade de possíveis alternativas. A exemplo, produzir alimentos próximo das cidades e utilizar fertilizantes orgânicos, recuperar energia de sistemas de saneamento, incentivar a produção de energia renovável, reduzir perdas e racionalizar a gestão dos recursos hídricos com olhar na interdependência com outras cadeias. Tudo isso, gera ganhos sistêmicos por meio de soluções razoavelmente simples, acessíveis e de potencial de ganhos intersetoriais. Não nos esqueçamos ainda da preservação dos ecossistemas e de sua importância sistêmica, garantindo proteção e resiliência diante das mudanças globais em curso. Por fim, cabe ainda combater o negacionismo científico que se sobreleva por posições reducionistas, como no caso da expansão inconsequente da monocultura predatória.

Leandro Luiz Giatti é biólogo e doutor em saúde pública, professor associado da Faculdade de Saúde Pública, USP (Universidade de São Paulo).

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