A analogia da casa: uma crítica etnográfica às políticas de austeridade

Gustavo Onto e Eugênia Motta
A realidade das economias domésticas não só difere da imagem criada pelos defensores de políticas de restrição orçamentária como coloca em xeque os fundamentos de seus argumentos

As políticas de austeridade ao redor do mundo fracassaram e comprovaram ser incompatíveis com momentos de crise econômica e sanitária. A rígida disciplina fiscal não produziu o crescimento econômico esperado por meio da imaginária escalada da confiança empresarial. A pandemia fez com que os limites teóricos do endividamento público se tornassem uma fábula de políticos e economistas. Mesmo assim, passado o momento mais grave da crise sanitária, que havia tornado premente a necessidade de gastos, voltou-se rapidamente à defesa obstinada de medidas de restrição orçamentária. Um dos argumentos públicos mais poderosos em favor dessas políticas é a comparação da economia dos países com as finanças domésticas. Economistas, jornalistas ou políticos defensores da austeridade afirmam que a economia nacional deve ser administrada de modo similar a uma casa de família, sem gastos excessivos e, de preferência, sem dívidas. Imagens como a do “teto de gastos”, do “cobertor curto” e da “arrumação da casa” compõem esta analogia que expressa concepções tanto sobre economias nacionais quanto sobre economias domésticas.

Os críticos das medidas de austeridade costumam contra-argumentar dizendo que a economia nacional não funciona como a economia das casas. Preservam, assim, os dois lados da comparação, contestando apenas a suposta equivalência. Nossa crítica vai em outra direção. A etnografia, o estudo de longo prazo do cotidiano das pessoas, mostra que as casas também não funcionam como a analogia sugere e, mais que isso, que as lógicas que de fato guiam a economia cotidiana podem servir de base para críticas radicais à austeridade. Antes de chegar a elas, porém, é preciso investigar a relação entre as ideias sobre casa e economia, e compreender como elas participam na produção de realidades econômicas.

Interesses políticos e econômicos, comunidades epistêmicas restritas ou filiações sociais e profissionais podem explicar prescrições de política econômica claramente inadequadas para um momento. Supondo uma crença sincera entre aqueles que propagam medidas de austeridade e considerando o apelo público que elas têm adquirido, podemos nos perguntar, como fez o antropólogo Keith Hart: se os fundamentos dessas políticas são tão frágeis, em que se assenta sua credibilidade?

Hart argumenta que as linguagens popular e profissional sobre a economia, reforçam umas às outras. Isso explica porque certos discursos, mesmo frágeis ou até completamente equivocados, podem orientar grandes ações governamentais. A analogia com a administração da casa é central para a capacidade persuasiva da tese da austeridade. A gestão da economia doméstica proporciona uma linguagem compartilhada que relaciona justificativas políticas a atributos morais. A disciplina fiscal acaba sendo valorada por seu comedimento, moderação e racionalidade. A casa, como lócus central da vida familiar e suas moralidades, funciona como um modelo oportuno para conectar experiências individuais e coletivas, justificando e legitimando políticas econômicas.

Na Antiguidade romana, austero (austere em latim) significava amargo, obscuro ou sombrio. Como qualidade moral, austero era aquele que possuía certa atitude severa ou obstinada. A noção começou a ser mais utilizada para caracterizar casas (domus romanos) sem luxos, prezando a autossuficiência doméstica, como explica Hart. A ausência de austeridade era malvista pela aristocracia proprietária de terras, que temia as consequências sociais da importação de produtos caros sem que seus compradores tivessem como pagá-los.

A austeridade romana tinha uma relação estreita com a noção grega de oikonomia, que dizia respeito à gestão das propriedades senhoriais. Para Aristóteles, este conceito estava associado às grandes casas fortificadas dos proprietários de terra, que incluíam sob seu domínio pessoas escravizadas, artesãos, servos, hortas, campos e animais. Essas grandes casas deveriam ser autossuficientes e perseguir uma administração parcimoniosa e contida de seus recursos.

A normatividade da autossuficiência doméstica era, assim, marca das classes proprietárias de terra, que buscavam conservar seu domínio ameaçado pela “classe antissocial”, que perseguia lucros por meio das trocas comerciais. Aristóteles separa claramente a oikonomia da crematística, a arte de angariar riquezas, inaugurando uma linha de pensamento sobre o dinheiro que geraria não apenas os interditos morais medievais sobre a aferição de lucro e a cobrança de juros, mas também as teorias da neutralidade monetária, tão importantes na fundamentação e justificação, a partir do século 18, de medidas de controle de gastos estatais.

Essa breve arqueologia dos conceitos ilustra como a imagem da casa com restrição orçamentária, com um “teto de gastos” bem definido moral e financeiramente, está presente na própria etimologia do termo economia. A austeridade, enraizada no princípio de oikonomia, tratava da administração de um feudo aristocrático e não da governança de uma economia capitalista. A aplicação do princípio de austeridade às economias contemporâneas carrega esta contradição. Outra contradição, porém, está no centro dos nossos argumentos: embora apele para uma experiência comum, a imagem da casa produzida nas políticas de austeridade não reflete a realidade das casas de família.

Desde as primeiras incursões entre os povos chamados de “primitivos”, os antropólogos prestaram atenção nas casas e na conjunção entre funções objetivas e aspectos simbólicos expressos na sua arquitetura. Ao longo do século 20 esse interesse se expandiu para o estudo desses espaços como instituições sociais que também representavam as famílias, como sugeriu Claude Lévi-Strauss. O autor mostrou a semelhança entre o entendimento sobre parentesco da aristocracia europeia (as casas nobres) e de indígenas norte-americanos (numaym, entre os kwakiutl), que, igualmente, têm como referência a casa quando falam de seus parentes e dos laços que os unem. O estudo etnográfico de casas contemporâneas mostra esses aspectos entrelaçados às atividades cotidianas de cozinhar, cuidar, comer, dormir, em seu aspecto tanto prático como alusivo ao que entendemos por intimidade e proximidade emocional. O dinheiro atravessa todas essas dimensões. É necessário para comprar ou alugar moradia, adquirir comida, é dado e recebido em forma de ajuda para quem “é da casa”, é guardado, emprestado, herdado e gasto segundo relações de confiança e afetividade. O que os etnógrafos descrevem são as relações intrínsecas entre tudo isso.

A etnografia permite mapear e compreender a diversidade de experiências humanas. Ela enfrenta, assim, ideários de normalidade bem estabelecidos que são, na verdade, projeções dos ideais de pessoas e grupos dominantes que os apresentam como neutros e irrefutáveis

Esta perspectiva permite reconhecer dois princípios aparentemente contraditórios que, na economia da casa, se combinam: a autonomia e a interdependência. Toda casa é fruto de outras casas. Em geral, é a formação de um casal que inaugura uma nova casa e, de maneiras diferentes entre ricos ou pobres, as moradias dos pais do novo par quase sempre estão envolvidas nisso, na forma de ajudas e heranças. As novas casas continuam ligadas às que lhes deram origem, com os filhos prestando ajuda, mostrando respeito e consideração por meio de visitas periódicas, dando e recebendo presentes. São trocas que quase nunca são pensadas como tais, mas que estão na base daquilo que sentimos como as obrigações que envolvem as relações com as pessoas que amamos. Essa é uma das modalidades mais importantes de circulação de objetos, dinheiro e ajuda entre casas. Uma nova casa autônoma, ou seja, capaz de abrigar uma nova família, só é possível se contar com outras, no momento de sua constituição e ao longo de sua existência. Os dois princípios, portanto, estão necessariamente vinculados e precisam ser constantemente negociados.

Parte dos afetos que envolvem familiares são pensados e experimentados como dívidas morais, mas que se expressam frequentemente na circulação de dinheiro. A obrigação de cuidar dos pais idosos, de ajudar um membro da família a pagar pelos estudos e tantas outras formas de demonstrar amor, respeito e consideração, envolvem dívidas com prazos longos que às vezes atravessam gerações e quase nunca se considera que foram quitadas. Na economia da casa, se oferece comida e cuidado a quem não pode contribuir com nada, nem dinheiro, nem trabalho. Essas relações são permeadas, não raro, também por conflitos e disputas.

Embora as casas sejam uma referência fundamental na forma como as pessoas pensam e organizam suas finanças, ela não é uma unidade fechada. Fazem parte dos gastos as ajudas e por outro lado, pode-se contar com o crédito que vem de outras casas. As contas de cada casa nunca fecham, porque elas estão sempre em dívida e oferecendo crédito, ao mesmo tempo. Em um segundo sentido, as contas, as finanças de uma casa, não a fecham em si mesma, mas preservam e constroem relações, essas sim, o mais importante para que ela se mantenha ao longo do tempo. Diferente da casa imaginada pela ciência econômica, administrada mês a mês, que regula os gastos estritamente segundo os ganhos, as casas de verdade são arranjos em que compromissos morais, intergeracionais e relacionais embasam a administração dos recursos.

Voltamos ao nosso ponto inicial. Tanto os economistas que argumentam pela equivalência entre o governo da economia nacional e a administração de uma casa, quanto aqueles que discordam dessa comparação, ignoram a realidade do lado doméstico da equação. Parece certo que uma economia funciona muito diferentemente desse ideal ficcional da casa autocontida e equilibrada, mas tem semelhanças com as casas tais como elas são. Essas nascem e permanecem endividadas, se inscrevem em arranjos extensos de relações e compromissos coletivos e existem no longuíssimo prazo. Por outro lado, a fantasia operada no modelo da austeridade é de uma casa atemporal, sem passado e sem futuro. Uma casa isolada de outras. Uma casa que não existe.

O uso da casa imaginária como argumento em favor das políticas de austeridade tem efeitos reais. Colocá-la em questão significa disputar concepções sobre a economia e os valores que devem guiar o seu governo. A perspectiva etnográfica sobre as casas interpela as políticas de austeridade por meio de uma crítica realista aos seus fundamentos.

O uso da casa fictícia contribui para a noção de que o bom governo – doméstico e da economia nacional – consistiria em uma operação contábil simples de mensuração de quanto entra e quanto sai. A analogia se alimenta, portanto, do ideário moderno de quantificação da vida social e doméstica, de explicação da vida individual e coletiva por meio de números e sua suposta neutralidade, o que esconde escolhas morais e compromissos políticos, relações que a etnografia, por seu lado, torna explícitas.

A casa austera opera isoladamente, reforçando a ideia de que cada unidade está limitada às suas próprias condições financeiras. A política de austeridade justifica a incapacidade de gastar por meio de um enquadramento individualista da administração da casa. Da mesma forma que a casa não teria a quem recorrer, sobrando apenas o sacrifício familiar, o Estado só poderia cortar seus próprios benefícios. Nesse universo, são os salários que sustentam as casas, assim como os impostos mantém o Estado. As relações recíprocas entre casas são apagadas, da mesma forma que são apagadas as relações de endividamento e os processos de criação de valor que possibilitam a gestão intertemporal da economia nacional.

Essa casa isolada e independente se inscreve em um horizonte temporal limitado, em geral o prazo do mês, da renda salarial formal, mesmo que a política de austeridade fiscal se justifique como sacrifício necessário em nome das gerações futuras. As casas que os etnógrafos descrevem, por outro lado, pertencem a temporalidades mais longas, múltiplas e complexas, que comportam projetos e aspirações coletivos e individuais, mas que se efetivam em uma moralidade operada no presente.

A ciência econômica apresenta uma perspectiva sobre a casa marcada pela tradição disciplinar e pelo meio social em que ela se desenvolve e tem como ideal. Um mundo, hoje, de homens assalariados, e por isso organizado na lógica mensal, guiadas por uma moral burguesa que valoriza a família nuclear – pai, mãe e filhos – em detrimento da família extensa, mesmo que, na prática, suas redes mais amplas garantam acesso a empregos, favores, ajuda e crédito. Mas o discurso meritocrático, tão caro aos maiores privilegiados, não comporta essa parte de suas próprias histórias. Um mundo masculino que idealiza uma lógica de domínio soberano sobre a casa e seus membros, no lugar das relações horizontais de solidariedade. A economia da casa real, por outro lado, é uma economia conduzida pelas mulheres, em geral as responsáveis por administrar o seu dinheiro, como várias pesquisas mostram. Nos momentos de crise – sobre isso também há muitos dados – as mulheres são as responsáveis por criar soluções e estratégias para manter a família e elas sempre passam por operações mais sofisticadas do que, simplesmente, cortar despesas.

A etnografia permite mapear e compreender a diversidade de experiências humanas. Ela enfrenta, assim, ideários de normalidade bem estabelecidos que são, na verdade, projeções dos ideais de pessoas e grupos dominantes que os apresentam como neutros e irrefutáveis. Sob a imagem dessa casa “óbvia” e genérica, as políticas de austeridade se apresentam também como um sacrifício igualmente partilhado. Ao proporem que todas as casas seriam administradas da mesma maneira e que os princípios que as governam seriam simples e evidentes, negam as enormes diferenças entre elas, quando está claro que a austeridade sacrifica algumas pessoas, algumas casas e alguns futuros muito mais que outros.

Comparar a economia de um país à economia de uma casa para defender sacrifícios – da maioria e garantir os ganhos de uma minoria – é uma ficção duplamente enganadora. Ao contrário do que os economistas simpáticos à ideia fazem parecer, é uma forma de esconder (e refazer) não apenas uma realidade, a da economia nacional, mas a da economia real também. “Dona Maria”, imagem da administradora da casa utilizada com frequência por economistas que pretendem sequestrá-la para o seu lado, nunca concordaria com os argumentos em defesa da austeridade. Ela poderia mesmo dar boas lições sobre o futuro aos que querem nos convencer de seus planos escondendo a nossa própria experiência de nós mesmos.

Gustavo Onto é Visiting Scholar do Robert L. Heilbroner Center for Capitalism Studies na New School for Social Research. É coordenador do Documenta (Laboratório de antropologia do Estado, regulação e políticas públicas) e pesquisador do NuCEC (Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia), ambos na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional, desenvolve pesquisas etnográficas sobre formas de regulação ou governo da economia.

Eugênia Motta é professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia do Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É pós-doutoranda sênior com bolsa da Faperj no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. Coordena o Grupo CASA e é pesquisadora do NuCEC. É Mestre e doutora em Antropologia e faz pesquisa sobre economia cotidiana em favelas no Rio de Janeiro. Também estuda quantificação, produção e uso de estatísticas.

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